sábado, 12 de dezembro de 2015

Agostinho Ricca – cidade, habitação e (com)tradição!



Por Fernando Matos Rodrigues

Falar sobre cidade e habitação a partir da complexa e densa obra construída e projectada do Arqto Agostinho Ricca (1915-2010) é sem dúvida um desafio e uma provocação epistemológica sobre a função da arquitectura e do arquitecto na cidade. É também elaborar uma reflexão crítica e interpretativa sobre as últimas décadas da história da arquitectura na Europa e em Portugal. Enquadrando esse mesmo percurso entre a afirmação do Movimento da Arquitectura Moderna num contexto nacional dominado por uma ideologia conservadora que procurava na memória histórica a afirmação de uma arquitectura revivalista.
Aliás, sobre esta realidade Manuel Mendes, considera que a «partir de meados da década de 40, a casa unifamiliar, isolada ou de continuidade, singular ou agrupada, folclorizada num culto anacrónico e patológico do estilo português e portuense, serviu quase exclusivamente à consolidação-consagração de bolsas-bairros da elite portuense, nomeadamente na zona das Antas no sector oriental da cidade, e na zona de Gomes da Costa no sector ocidental»[1].
Com o advento do Movimento Moderno a arquitectura integra-se num processo de valorização das transformações e das utopias sociais, dá outro sentido estético e ideológico aos pretextos funcionalistas, relaciona-se também com os movimentos plásticos, de forma a construir uma identidade e uma autenticidade arquitectónica, tendo como base a racionalidade construtiva e a produção estandardizada.
É neste contexto internacional de forte criatividade e inovação conceptual e construtiva, que a obra de Agostinho Ricca se integra e evolui de forma a acompanhar as contradições e as limitações espitemológicas de um programa de arquitectura que se pretendia simbólico e fracturante.
 Agostinho Ricca vai desta forma construir um pensamento arquitectónico que tem a sua genealogia no Movimento Moderno. É um arquitecto claramente empenhado no e do movimento moderno. Neste sentido, vai acompanhando as contradições e as redundâncias, as crises e as mudanças desse mesmo movimento, dando força a uma necessidade de superar esses obstáculos com a afirmação e a valorização das suas preocupações funcionais e construtivas inseridas numa sensibilidade arquitectónica que se traduz na valorização do desenho, da expressividade, da luz e da poética dos detalhes construtivos dos novos materiais que utiliza nas suas obras.
Daí se pode afirmar, que o desenho na obra arquitectónica de Agostinho Ricca é uma espécie de ortopedia dos sentidos, como possibilidade construtiva de epifanias da luminosidade espacial. A arquitectura assume com Ricca o seu lado mais poético e imagético, dando sentido antropomórfico aos espaços interiores que constrói em relação profunda com a natureza dos materiais: o betão, a madeira, o vidro, o tijolo maciço e o aço. 
 Agostinho Ricca, faz-se arquitecto com uma arquitectura na e para a cidade. Num país que vive em profundo anacronismo estético e ideológico, ancorado ainda numa estrutura social e política pré-moderna, que não aceita e repudia as gerações novas, que persegue e exclui as utopias sociais. Um país que recusa o novo da modernidade e que se refugia na identidade e na memória manipulada ao serviço de uma pátria que já não era de Junqueiro nem de Álvaro de Campos.
Lá “fora” o tempo era de mudança e de complexidade. De inovação e de criação transversal a todas as artes. José António Bandeirinha, considera que no moderno «mais do que uma colecta de modelos em mimese formal, lexical ou normativa, ganhava corpo, um sistema de aproximação entre método e obra que encadeava o devir social, as práticas projectuais, as percepções do espaço, a identidade e a autenticidade das matérias, as actualizações racionais da capacidade construtiva, a produção estandardizada, as tentativas de normalização dimensional, e, por último, a expressão plástica potenciadora pela descoberta da adaptabilidade dos novos materiais»[2]. Com o advento da modernidade criam-se condições para a recusa das convenções do passado, em benefício da utopia social e urbana.
Neste vértice de crise da modernidade, Agostinho Ricca vai se confrontar a si e à sua obra, com um pensamento moderno já dominado por um conjunto diversificado de problemas e de contradições. Contradições, essas, que estão na origem da sua crise ou da sua transformação como Homem e como arquitecto. É o aparecer de um conjunto de redundâncias técnicas que opunham racionalismo versus naturalismo, expressionismo versus estilo internacional, funcionalismo versus organicismo. Manuel Mendes, sobre o projecto em Agostinho Ricca, para uma casa em andares de duas frentes na Rua de Fernão de Magalhães (1945)[3], se dá conta do duro constrangimento portuense, é também o grito do homem moderno que «corre, em vão, atrás de um presente a cada instante cheio de uma fabulosa e excessiva riqueza, em face da qual morre de sede» (E. Lourenço)[4].
Contudo, a arquitectura assume um corte com o dogmatismo inicial do Movimento Moderno assente na Carta de Atenas, com o entendimento de que a arquitectura é também o resultado de um sistema complexo, de relações que torna possível a integração da técnica e das artes. O princípio de que a forma era «razão mais que suficiente» para satisfazer as exigências da qualidade espacial, deixa de responder às suas preocupações da qualidade espacial e poética na sua arquitectura.
Em Portugal, a década de 50 vai ser um período de transição e de forte reflexão critica para com o jovem Arquitecto que inicia a sua aventura como professor na Escola de Belas Artes do Porto. A crise do Movimento Moderno na Arquitectura,  dá origem a um processo de procura de referencias locais, de contextualizações dando origem a explorações organicistas e regionalistas criticas que vão ter no Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa (1955 e editado em 1961) o seu marco referencial para abrir o caminho a uma ruptura e a uma transformação de todo o pensamento do programa arquitectónico moderno nacional com uma vertente mais humanista e cultural. Esta crise do Movimento Moderno assinala em Portugal o retomar do sentido integrador que parece constituir uma constante da arquitectura portuguesa[5]. Na cultura arquitectónica portuguesa está bem presente a confrontação entre dois lados bem distintos. De um lado a questão da tradição construtiva e do outro lado, a questão da modernidade e do regionalismo. É neste ambiente de resistência face a um conservadorismo oficial, e também a um esquematismo do Estilo Internacional que nasce o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa.
Neste contexto, o arquitecto e a sua obra dialogam com a cidade, com a rua, com o lote em branco que se deseja ser cidade. Procura fazer do desenho uma aproximação ao lugar, ao sítio, dialogando com os contextos e com as identidades construídas da envolvente, sem constrangimento e sem oposições dogmáticas e híper racionalistas. O projecto é um instrumento ao serviço da harmonia, da beleza e da integração das massas e dos volumes em contextos de cidade. O projecto é assim, uma obra singular que se afirma na cidade com essa vontade forte de também querer fazer cidade. Jacinto Rodrigues integra a arquitectura de Agostinho Ricca, na conjugação dos princípios da racionalidade do moderno, na multiformalidade do organicismo e na poética construtivista. Projectando novas formas, novas espacialidades, novas linguagens que se traduzem numa gramática expressiva e harmónica de grande densidade poética, capaz de criar outras escalas e outros volumes, outros detalhes e outros cenários. A sua arquitectura permite ao Homem experienciar outras experiencias espaciais com a criação de cenários de grande intensidade espiritual e estética como é o caso do Parque Residencial da Boavista (anos 60 e 70). Permite a descoberta de outros territórios, de outros contextos, outras interioridades, de outras circulações e de outras interacções. Estamos perante uma nova concepção do espaço, da cidade e da habitação.  Um polimorfismo espacial que se conjuga com uma hierarquia espacial, de espaços de dentro e espaços do fora, uma taxonomia construída a partir de horizontalidades semânticas e de verticalidades graficamente evoluídas para um sentido escultórico do objecto arquitectónico, mas integrador do habitar no contexto urbano. O exemplo, que melhor traduz este sentido de topos, é o caso do Edificio de habitação Montepio Geral, construído em 1960-61, na Rua Júlio Dinis no Porto. Com esta intervenção arquitectónica procurava-se a afirmação de que a arquitectura deve dialogar e se possível deve inscrever-se num lugar, num sítio, numa história e numa cultura. Estamos na presença de uma construção que faz a articulação entre o espacial e o social, o consolidado e o emergente, o contínuo e o descontínuo, o fragmento e o todo absoluto.
A construção remete para os padrões do movimento moderno, no etanto, a concepção global , organizada em função do lote, do sitio, da rua, representa uma evidente libertação dos princípios ortodoxos dos CIAM, propondo uma noção de espaço mais organicista, onde o detalhe, o ritmo, a harmonia como que procuram a construção poética dos sentidos. Estamos a falar dos casos do Edificio de Moradias, construído em 1949 na Rua João de Deus. Um bloco de moradias unifamiliares, onde o sistema é o esquerdo-direito, com escada principal. Com este sistema evitam-se custos com a construção de galerias, desperdício de espaço, evita-se a uniformidade das tipologias, garante-se uma relação mais directa com a rua, com a cidade e o mundo exterior. Valorizando a individualidade da pessoa, integrando-a em espaços com identidade urbana significativa e desta forma garantia o direito à cidade. Num espaço heterogéneo que se materializa em forma de concha onde o ser é “coisa” heterotopica.
Estamos na presença de uma arquitectura de grande complexidade poética que nos remete para a valorização de um sentido de Tempo e de Espaço. Integrado numa fenomenologia de um espaço luminoso, etéreo e cosmológico.







[1] Cf. Manuel Mendes, Guia de arquitectura Moderna Porto 1901/2001, Porto, edição Ordem dos Arquitectos e Editora civilização,  2001.
[2] Cf. José António Bandeirinha, “A Arquitectura Moderna: o grau zero da memória”, in Arquitectura Moderna Portuguesa 1920/1970, p.24
[3] Esta casa não passou de projecto, isto é, não veio a ser construída.
[4] Cf. Manuel Mendes, Op. Cit. 2001.
[5] Ver o caso paradigmático da Casa que Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira projectam para Vila Viçosa , em 1958, onde pela primeira vez é encarado o processo de humanização em curso com um realismo sem precedentes  e assim, se transformando em tese experimental. A importância de responder ao problema colocado pelo sitio, pelo ambiente e pela cultura dos utilizadores, opondo-se claramente à moda de conseguir artificiais efeitos plásticos, ao gosto dos funcionalismos do Estilo Internacional. 

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