sábado, 7 de fevereiro de 2015

O PROCESSO SAAL 74/76 -um programa de habitação com direito à cidade

 



          FernandoMatosRodrigues[1]


Este trabalho tem como objectivo principal reflectir sobre a Operação SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), enquanto programa de habitação com direito à cidade, que decorreu entre Agosto de 1974 e Outubro de 1976, envolvendo os movimentos sociais, as Comissões e as Associações de Moradores, integrados nos Movimentos pelas Lutas urbanas pós 25 de Abril de 1974 em Portugal, num contexto de profunda carência de habitação nas cidades do Porto e de Lisboa.

Margarida Coelho, responsável pelo SAAL Norte, considerava que no Porto já havia um «passado de luta pela habitação, e uma expectativa na mudança política pós 25 de Abril» Aliás, não é por acaso que as primeiras movimentações se deram nos Bairros Camarários, no dia seguinte ao 25 de Abril, onde viviam algumas milhares de pessoas, sob um regulamento de utilização da habitação, que interferia com a vida privada, atentatório da liberdade e digno de um Estado totalitário (Coelho,1986, p.622). No 1 de Maio de 1974, os Moradores do Bairro Camarário de S. João de Deus, no Porto, manifestam-se junto ao Quartel-General e apresentam o seu caderno reivindicativo, o primeiro contra o regulamento camarário em vigor. Em 26 de Maio, manifestação em frente da Câmara Municipal do Porto contra o regulamento fascista dos Bairros Camarários[2].

Assistisse a um conjunto de manifestações centradas em problemas concretos da habitação, que condicionavam os seus moradores e eram sem dúvida, causa de muita insatisfação popular. Estamos perante a formação de uma maior consciência do direito à habitação e do direito à cidade, que o 25 de Abril de 1974 possibilitou a todos aqueles que se sentiam excluídos de um direito que o próprio Estado não garantia e, indignamente lhes negava. Com o SAAL, a habitação deixa de ser um problema e transforma-se num direito, pelo facto de ser considerada um bem de primeira necessidade.

Nuno Portas considera que «de certo modo, a habitação e, sobretudo, as barracas, foram sempre a grande bandeira reivindicativa ao longo de todo o pós-25 de Abril; já era, de resto, antes do 25 de Abril, uma das maneiras privilegiadas e das poucas admitidas ou toleradas de dizer mal do governo» (1986, p.635). A habitação é assim, entendida nas suas funções mais básicas de elemento material e físico, que permite a construção de um espaço essencial para a reprodução da instituição familiar, e um espaço de integração social e de socialização alargada. O 25 de Abril foi assim, uma espécie de apoteosis da exterioridade absoluta, a mais radical das exteriorizações populares pelo direito à habitação na cidade. Todo o morador, residente nos bairros camarários, nas ilhas, ou nos bairros clandestinos da cidade, utilizou este momento de explosão de liberdade para tomarem consciência dos seus direitos, como multidões sem território, sem cidade, sem habitação, sem lugar; numa cidade que os deslocou, vigiou e marginalizou nos blocos periféricos. Populações errantes, condenadas a dissolverem-se num urbano periférico e desinfraestruturado, excitado por um nomadismo sem fim e sem sentido.

As últimas décadas do Estado Novo foram marcadas por um conjunto de Politicas de Habitação centradas num programa de vigilâncias intensivas em nome da manutenção da ordem pública e da salubridade social que conduziu à destruição de casas, de ilhas, de bairros em nome da salubridade e das políticas higienistas da época. Deslocando os moradores da cidade para as periferias desumanas, densificadas por blocos em altura tipo gavetas onde se arrumavam famílias, homens, mulheres, crianças e velhos. Rompendo com laços de vizinhança e de família, empurrando os antigos moradores das ilhas para uma situação social de desterrados da vida urbana. O problema da habitação em Portugal era muito grave, com um Estado e respectivas Câmaras Municipais sem capacidade de darem resposta na proporção adequada ao problema que se agrava com a concentração das classes rurais que se deslocam do campo para a cidade. As medidas do Estado Novo concentradas nas Politicas de habitação com o programa das casas económicas do ministro Cancela de Abreu não foram suficientes e justas na distribuição e na resolução do problema da habitação, pelo contrário agravaram o problema com a deslocalização das populações que viviam no centro das cidades para os bairros periféricos à cidade consolidada. Mais tarde com as Politicas de Melhoramentos do ministro Arantes de Oliveira o programa desenvolvido na habitação em blocos levou à concentração, à exclusão de muitas famílias que moravam no centro da cidade do Porto e que foram empurradas para fora da cidade, integradas em blocos e sujeitas a regulamentos que condicionavam a liberdade dos seus moradores desde o espaço interior das suas casas até aos espaços colectivos.

No Porto o problema da habitação concentra-se  no Plano de salubrização das "Ilhas" de 1956 com a remodelação urbanística da cidade tendo como objectivos «como a melhoria das condições de alojamento de uma parte importante dos seus habitantes moradores nos bairros mais antigos e nas tradicionais ilhas portuenses». Este plano enquadrava-se numa visão mais ampla de requalificação da cidade, mais especulativa e imobiliária, pela vontade dos poderes na afirmação de «valorização da cidade velha, os de trânsito, os de expansão da cidade», em sintonia com a remodelação urbana da cidade fisica e social centrada na «luta contra a insalubridade inaceitável e perigosa, quer sanitária quer moralmente, duma forte percentagem da população de mais modestos recursos, alojados nas ilhas». A insatisfação começa com as rendas excessivas para as camadas populares insolventes, com regulamentos centrados no higienismo social e na salubridade pública que comprometiam a liberdade dos moradores e a sua identidade social e cultural. Com a exclusão dos antigos moradores do centro da cidade, onde viviam e onde trabalhavam e tinham já estabelecido vínculos de integração e de socialização fortes com a cidade. Estes fenómenos levou ao aparecimento de movimentos sociais, segundo Nuno Portas que «contestam o regime em torno do tema da habitação, quer pelo lado da exigência de nova habitação, quer pelo lado da ocupação das devolutas, quer pelo lado da problemática das rendas, especialmente dos sub-alugas, no caso do Porto» (1986, p.636).

            O Programa SAAL vem sem dúvida centrar o problema da habitação no contexto do Direito à Cidade e no Direito á Habitação, apresentando um programa de habitação para a cidade e para as classes insolventes que pela primeira vez se ajusta à realidade social e económica destas classes desfavorecidas, marginalizadas pelo mercado de arrendamento e pelas políticas de habitação que não lhes garantiam um direito à habitação na cidade. Esta consciência de luta social organizada, ganha expressão e consciência, quando dela resulta a conquista de um direito a uma habitação digna. A expressão «POPULAÇÃO ORGANIZADA, HABITAÇÃO CONQUISTADA», traduz bem esse processo de luta social em torno da habitação. Valorizando o descontentamento, ouvindo os moradores, reforçando as Comissões de Moradores e as suas Associações em sintonia com as Brigadas Técnicas do SAAL que em mediação e participação davam origem a programas de habitação integrados na cidade para as classes mais pobres. Neste sentido, o 25 de Abril desencadeia uma nova fase de luta pelo direito à habitação marcada fundamentalmente, pela poderosa iniciativa dos moradores dos bairros pobres que se organizam e levam a cabo processos reivindicativos e acções sucessivamente mais agressivas que o então articulado aparelho de estado dificilmente podia conter[3].
Um Programa de habitação complexo, mas com uma metodologia simples mas eficiente na forma como envolveu as partes na resolução do problema da habitação popular. Um programa que defende a participação na definição do programa que se quer e onde se quer instalar, com as populações a decidirem pelo direito à cidade. Com a possibilidade de expropriação e tomada de posse do solo urbano necessário à implantação  e ao desenvolvimento desse mesmo programa. Nuno Portas assume que se tratou de «uma iniciativa do governo, com um caracter experimental», daí toda a sua informalidade e capacidade de se adaptar às situações, com uma originalidade e criatividade específicas, contextualizando as soluções das suas operações. Referindo que, «os projectos iniciavam-se logo que se constituíam as comissões de moradores, os terrenos estavam a escolher-se e, entretanto, iam-se preparando os decretos que deveriam consolidar o processo» (1986, p.637).

Estamos perante o Direito ao uso do solo urbano por parte das camadas populares da cidade do Porto, acontecimento verdadeiramente revolucionário, no sentido amplo do termo. Pela primeira vez a distinção entre cidade e urbano, entre cultura urbana e territorialidades urbanas, entre classes integradas e classes desintegradas, entre aqueles que possuem o direito ao solo urbano e aqueles que são excluídos desse direito, deixam de ter algum sentido social e político. É a plena democratização do solo urbano, é uma espécie de reforma agrária da cidade que possibilita a ocupação de casas abandonadas e a posse imediata do solo disponível para a instalação de casas para as famílias que viviam na cidade sem conforto, sem qualidade, sem uma habitação digna desse nome.  Nuno Portas, considera que um dos problemas mais importantes do Programa SAAL é aquele que tem «uma incidência urbanística do problema», isto é, «trata-se de reconhecer um direito à permanência no sítio que as comunidades já habitavam ou, o que é o mesmo, tratava-se de reconhecer uma certa continuidade às comunidades que viviam em condições de habitação más, mas em áreas que muito provavelmente lhe serviam.

Este reconhecimento do direito ao sítio era também um pau de dois bicos». Portas abria assim, a possibilidade de as populações poderem escolher outra solução fora do lugar de origem. Com todos os problemas que daí podem vir, desde a deslocalização por interesses imobiliários, ou por pressão política dos planos ao serviço de outras estratégias urbanas. Programa SAAL desde cedo se transforma num processo de participação activa pelo direito à cidade e à habitação na cidade. O espaço social ocupa as preocupações das jovens brigadas técnicas, que envolvida neste imaginário de liberdades plenas acredita na transformação, na revolução, na arquitectura como instrumento para a democratização do direito à habitação daqueles que foram sempre estigmatizados e excluídos de uma habitação digna.

A nossa intervenção neste Congresso não pretende ser uma celebração nostálgica do SAAL, mas um pretexto para aprofundar e valorizar os instrumentos de mediação e participação em função de um conjunto de práticas arquitectónicas que tinham como princípios fazer uma arquitectura de baixos custos e sem grande manutenção, onde a simplicidade do desenho não fosse um bloqueio à criação poética das formas arquitectónicas, mas cujo objectivo principal era resolver o problema da habitação das classes pobres e insolventes das nossas cidades.

Hoje, podemos de novo, levantar a questão da necessidade de re-inventar processos e instrumentos da arquitectura participada na resolução dos problemas que afectam as classes excluídas do direito à cidade e do direito à habitação, de forma a possibilitar que a habitação digna se transforme num bem social por direito, cumprindo com os acordos internacionais que o governo da nossa república subscreveu.

            O problema da relação entre propriedade fundiária e poder político está cada vez mais actualizado, e as vitimas já não são só as antigas classes populares, mas todos aqueles que são excluídos do direito à cidade e à habitação (jovens estudantes, famílias da classe média, quadros superiores e operários qualificados e não qualificados, mulheres e crianças). Estamos perante processos de marginalização e de segregação na cidade. Com a existência de conflitos abertos entre os interesses da promoção imobiliária e os instrumentos da burocracia politica que define planos e investimentos públicos sem coesão social.

Ainda, sobre a problemática da cidade e da habitação, Siza Vieira (1986, pp. 37 e ss.), considera por exemplo, que «a existência de duas cidades: a aparente e representativa e a cidade escondida dos interiores de quarteirão, dos pátios e das ilhas» nos deve conduzir para uma reflexão séria em torno da habitação e do direito à cidade, única forma de combater a deslocação e a exclusão das classes operárias (“insolventes”) do direito à habitação digna na cidade do Porto.

Siza Vieira coloca o acento na valorização do direito à cidade independentemente da sua relação com a rua, com o quarteirão. Este direito à cidade é também um instrumento de resgatar a cidade escondida, a cidade dos outros, a cidade marginalizada. Para Siza a intervenção arquitectónica deve ser um instrumento para fazer cidade, para cozer a cidade nas suas diversidades espaciais, sociais e culturais.

Para Siza Vieira (1987, p.37) a arquitectura só se legitima como disciplina, como linguagem e gramática ao serviço da cidade, quando se transforma num instrumento que «transforma a cidade, lugar por excelência da Arquitectura». Afirma, também que «o arquitecto não pode actuar (participar) imitando a espontaneidade que não tem; nem fechando-se numa produção supostamente erudita, quando a transformação da Arquitectura e da Cidade sempre assentou no cruzamento, mestiçagem, inovação e continuidade, procura de resposta aos problemas do quotidiano e ânsia de aventura» (1987, p.39).  

Siza Vieira interioriza e objectiva de forma lucida o problema da habitação na cidade quando nos fala desta «cidade marginalizada e tolerada». Mas como o próprio atira de seguida, «indispensável ao desenvolvimento da cidade». Enaltece a resistência da cidade, perante os escassos meios à disposição de programas com objectivos de construção de pequenas unidades de habitação periférica, onde predominavam regulamentos de controle fascista.[4]

Siza Vieira relaciona o aparecimento da Operação SAAL no contexto da crise de Arquitectura e da Cidade Contemporânea, o que conduz a uma espécie de sobressalto, que encontra em Portugal, depois do 25 de Abril de 1974 um clima favorável para a experiência, inovação e abertura na procura de novas soluções. Siza Vieira (1987, p. 39) afirma que «não creio distorcer a realidade, ao afirmar que esse período criativo participativo, de exteriorização da cidade escondida, num percurso da casa pobre ao Plano, quase não tem seguimento».

No contexto da Revolução do 25 de Abril de 1974, o problema da habitação na cidade do Porto ganha uma dimensão social, política e cultural que mobiliza milhares de moradores das “Ilhas” da cidade e associações de moradores dos bairros populares pelo direito a uma habitação digna. Poderemos considerar que se tratou de um verdadeiro e complexo movimento social urbano em torna de «Casas Sim, Barracas Não».

Esta consciência do direito à habitação e à cidade, leva Alexandre Alves a Costa[5] a considerar que «tínhamos a percepção de que, além das construção e concretização de uma política de habitação, o SAAL foi terreno para uma reflexão sobre a cidade e o estabelecimento de novas metodologias de intervenção que, tendo como princípio os mecanismos da democracia directa, garantissem o direito à cidade e ao lugar, como travões à sua estratificação classista e à especulação imobiliária, bem como o compromisso com todo o património edificado e com os seus valores históricos e culturais» (Alves Costa, 2014, p.10).
Num debate promovido na Associação de Moradores da Bouça sobre O SAAL, o arquitecto Álvaro Siza Vieira reafirma o seu pensamento, de que com o SAAL a preocupação do projectista «vai desde a sala e o banho até à cidade».

Com a Operação SAAL (serviço Ambulatório Local) programa desenvolvido entre Agosto de 1974 e Outubro de 1976, criado pelo Despacho conjunto dos Ministérios do equipamento Social e Ambiente e da Administração Interna em 31 de Julho de 1974, com o intuito de dar apoio às populações que se encontravam alojadas em situações precárias, o SAAL surgiu como um serviço descentralizado que, através do suporte projectual e técnico dado pelas brigadas que actuavam nos bairros degradados, foi construindo casas e novas infra-estruturas, foi oferecendo melhores condições habitacionais às populações mais carentes (Alves Costa, 2014, p.13).
Neste enquadramento de princípios e de metodologias de intervenção e participação, envolvendo os moradores, as comissões e as associações, na definição de um programa para melhor resolver as carências habitacionais, aparece logo a ideia de que toda a filosofia do SAAL é contra qualquer tipo de intervenção que deslocalize os moradores dos seus locais de residência. Este princípio é possível com um suporte político revolucionário de expropriações e de tomadas de posse administrativas imediatas dos solos e bairros disponíveis para responder a estas carências e respeitando o direito ao sítio e à morada.

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[1] Antropólogo e Investigador no Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho. Director do Laboratório de Habitação Básica e social. Mestre em Antropologia Social pelo ICS da Universidade do Minho, prepara tese de doutoramento sobre Antropologia e Sociologia da Habitação no ICS – Minho. Licenciado em História e Especialista em Estudos Medievais pela FLUP. Concluiu o Curso de Doutoramento em Teoria de Arquitetura e Projecto Arquitectónico na ESTA-Univ. Valladolid Espanha. Fundador e director da Revista Ruralia (1987-1994); e Director da Revista Cadernos ESAP (1997-99). Professor de Antropologia do Espaço no Curso de Arquitectura MIA- ESAP (1991-2014). Leccionou a cadeira de Teoria da Arte na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico da Guarda (2000-2001), orientou o Seminário sobre Espaço Urbano na Pós-Graduação em Cidade e Planeamento na Faculdade de Arquitectura da Universidade Lusíada / Famalicão (1998-2000).
[2] Cfr. Livro Branco do SAAL 1974/1976, 1976, págs.9 e ss.
[3] Cfr. “SAAL. Perspectivas para uma crítica” in CIDADE E CAMPO (José A. Ribeiro, Editor) N.º 2. Movimento Popular E Prática Urbanística em Portugal. Lisboa, Ulmeiro, 1979, pp.7-15. Aliás, como se pode ler nesta introdução ao tema do SAAL, que «em plena vigência do segundo Governo provisório, certo é que, frente a frente, ficavam, a partir de então e de um modo diferente, aparelho de Estado, moradores de bairros pobres e degradados (barracas, ilhas ou clandestinos) e técnicos ligados às questões da habitação e do planeamento que por diversas formas se vieram a relacionar entre si levando assim a cabo e ao longo de mais de dois anos aquilo que foi uma das mais ricas experiencias conhecidas no campo da habitação”. Foi sem duvida, a partir deste programa que se desenvolveu um processo que associando teoria e prática, participação e mediação, luta e consciência social, integrados numa nova metodologia de desenho, entendendo projecto e construção como uma espécie de síntese de uma actividade multidisciplinar resultante da relação constante entre os técnicos da brigada e moradores, a coordenação dos responsáveis do Fundo de Fomento de Habitação e a relação nada pacífica com os técnicos das Câmaras Municipais.
[4] Cfr. Vieira, Alvaro Siza (1987) “O 25 de Abril E A Transformação da Cidade” in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 18/19/20 . Coimbra, Ed. Centro de Estudos Sociais da Univ. Coimbra, pp.37-40.
[5] Ver por exemplo, Prefácio de Alexandre Alves Costa in O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, de José António Bandeirinha.

CASA, PATRIMÓNIO FAMILIAR E RELAÇÕES DE PODER



Este nosso estudo centra-se na complexidade histórica e antropológica das relações socio-económicas e políticas em torno da casa, da gestão do seu património familiar e também das relações de parentesco estruturadas e estruturantes desde o espaço local ao espaço regional. Sem duvida, um conjunto de reflexões em torno das relações de parentesco, e das estratégias matrimoniais, cujo principal fim é a conservação e a ampliação do património simbólico e material das respectivas famílias / casas.
Bourdieu sobre esta problemática considerava normal a passagem e a reconversão do capital simbólico em material. Para este autor, o capital simbólico concentra em si, todo o tipo de relações e de alianças, que vão desde a honra, os direitos e os deveres acumulados ao longo de gerações sucessivas, que se mobilizam em circunstâncias extraordinárias (1980:202).
Assim, sendo, capital material e capital simbólico são uma espécie de marcas que exibem a força material e simbólica, representada por aliados prestigiados, que as grandes famílias se esforçam por organizar, em torno de certas exibições onde o capital simbólico é uma presença forte, constante e subtil. As cerimonias festivas entre parentes, as solenidades matrimoniais, as festas religiosas dos santos padroeiros, o apoio a peregrinos, a pedintes. Tudo serve para a afirmação da honorabilidade e do prestigio dos parentes e da Casa.
Estes comportamentos fazem parte da socialização quotidiana destas Familias e destas Casas Grandes, através de um conjunto de acontecimentos festivos e cerimoniosos, dos quais o casamento, o nascimento e a morte são momentos de afirmação da Familia e da Casa,  para a estruturação simbólica e material das relações sociais mais amplas, entre os diversos actores sociais e, também entre as diversas Familias ou Casas da região. Ver por exemplo, a quantidade e a qualidade de trocas de bens materiais que geralmente envolve este tipo de cerimónias «o ouro e roupas do meu uso, moveis, prazos, reguengos, direitos e acções e seus respectivos terços e alma…roupas e prata de meza e chã, milhares de réis em dinheiro, camas aparelhadas com lenções, travesseiro e enxergão, colças e mantas…», bem como ainda «águas, animais, bosques, peagens e portagens,…»
Na região que estudamos, que se circunscreve à bacia do Paiva e Douro, um espaço agrícola por excelência, que faz a transição entre a montanha e o vale, as Casas Grandes e suas respectivas famílias estabelecem entre si, um conjunto diversificado de relações sociais, económicas e politicas, muitas delas seladas por contrato matrimoniais. Os filhos funcionam como um elemento vital na manutenção e na ampliação das relações entre Casas e Linhagens. Linhagens que através de uma definição específica de regras e de instrumentos, transmitidos de gerações a gerações, permite consolidar um conjunto de estratégias de administração e de transmissão hereditárias, que têm como principal fim a conservação do património da casa nas mãos de um só herdeiro (cfr. Iturra,1983:89).
Estamos a falar da administração do património, da sua transmissão hereditária e da categorização das pessoas, em função destas estratégias específicas, cujo objectivo é definir a posição dos indivíduos no contexto das suas relações, e também em função dos próprios meios de produção, tanto deles próprios como dos outros.
Neste sentido, a organização familiar nesta região, estrutura-se em redor da Casa, da Casa Familiar. Entende-se por casa todas as dependências e estruturas materiais e simbólicas, que de alguma maneira contribuem para a conservação e reprodução da honorabilidade do nome familiar. Garante da perpetuidade do bom nome da linhagem.
A Casa apresenta-se aqui, como um sistema de configurações arquitectónicas e sociais, físicas e culturais, ecológicas e ambientais, económicas e políticas, enquanto sistema complexo de representações e de significações ao serviço de uma espécie de grande sistema semiótico. Porque ela representa, classifica, identifica e individualiza desde o contexto local ao contexto regional. A Casa afirma-se, quando afirma a sua presença num espaço hierarquizado e integrado num determinado mapa social.
Estamos assim perante uma espécie de Sistemas Semióticos que representam formas de organização social, ideias e valores culturais, que identificam a honorabilidade da linhagem que nela habita ou que nela encontra um sinal e uma marca de mais-valia simbólica e material.
A arquitectura adquire uma forma de linguagem, e como tal denota significados socio-culturais e ideológicos, que permitem identificar e classificar grupos, classes, sociais diferentes. A Casa constitui-se assim, como um texto dotado de expressão própria, de acordo com os seus protagonistas e anfitriões. No fundo, ela é uma espécie de gramática espacial da residência, porque classifica, ordena e produz significação.
A Casa é uma espécie de unidade social primária, isto é, o nível de identidade social com maiores implicações para a apropriação social do espaço e para a integração estrutural do individuo. No fundo ela é estruturadora e estruturante, porque determina e porque classifica trajectos e mandatos. É no contexto da Casa que se processa a primeira socialização dos indivíduos, em sintonia com as configurações sociais do meio social envolvente que integra ou desintegra.
Casa e Familia estão o espaço social local e regional intimamente associadas, porque ambas dependem da sua capacidade de reprodução material e simbólica, e da qual, depende a sua durabilidade no tempo e no espaço histórico do lugar. Sobre esta realidade, Sobral(1995:302) considera que casa e terra são um símbolo da família e uma parte fundamental da sua memória e da sua identidade. Realidades plasmadas num Brasão de Armas dos Teixeiras Pintos; dos Cabrais Lousadas; nos Montenegros; nos Azeredos; nos Queiroz Ribeiros; nos Matos Coelhos; nos Castelos-Brancos; nos Telles e Noronhas; nos Botelhos.
Deve-se realçar a importância da terra, da posse da terra, a propriedade que permite a conservação e a ampliação dos poderes materiais e simbólicos destas linhagens antigas. Por exemplo, é normal que «em todas as famílias com propriedade, a memória dos direitos de cada um é reactivada necessariamente nos momentos de sucessão nos bens – e outrora, como se vê pelo formulário de contratos, em alguns casamentos (1995:302 e ss.). Um brasão pode ser pretexto para falar de um antepassado nobre – um visavô, umas arrecadações arruinadas, parte de um Palácio dos Senhores donatários, adquiridas por um avó, um motivo para falar deste e evocar recordações de descendentes dos primeiros (Sobral, 1995:302).
As Casas Grandes e respectivas Linhagens funcionam como uma espécie de infra-estrutura central num sistema produtivo e reprodutivo da própria formação social, onde o modo de produção de cada família depende da sua produção, da sua propriedade e das relações de poder, que por sua vez dependem da honorabilidade do seu nome, da exemplaridade das suas tradições, da qualidade das suas relações sociais. Estas ligações sociais permanecem de importância vital no modo de vida e da reprodução na vida dos seus grupos específicos, e em tudo aquilo que ele possivelmente transporta de passado, de memória e de glória.
Nesta região, é muito comum a troca de filhos e de filhas entre estas Casas Grandes, como forma de angariar alianças matrimoniais que possibilitem um reforço de posições na hierarquia dos poderes locais e regionais. As relações entre as Casas de Eiriz (Arouca) e a Casa de Penalva (Baião), a Casa Vaz Pinto (Arouca) e a Casa de Boco; a Casa de Penaventosa dos Cabrais, o casamento tem lugar entre conjugues originários do mesmo grupo social ou cuja situação e recursos tendem a equivaler no momento da sua concretização, é no espaço da sociabilidade entre estas Casas Grandes que se definem estratégias e alianças matrimoniais. Destacamos a partir daqui, a importância da Família como uma categoria social objectivada, isto é, uma espécie de estrutura estruturante, fundamento da própria Família como categoria social subjectiva, isto é, uma espécie de estrutura estruturada, categoria mental que é, por sua vez, princípio de milhares de representações e de acções. As alianças matrimoniais contribuem deste modo para a reprodução da categoria social objectiva e também para a reprodução da ordem e hierarquia social (Bourdieu, 1993:34 e ss.). Sobral considera por exemplo, que em relação ao papel da herança na reprodução dos grupos domésticos locais, as práticas de herança, associadas à propriedade fundiária, são tidas como factores que podem determinar a composição desses mesmos grupos domésticos (1993:240 e ss.), e funcionar também como elementos estruturantes e individualizantes da reprodução social. Contribuindo, assim, para a definição das estratégias sociais dos indivíduos no contexto da Casa e do Grupo Doméstico. Vale a pena enfatizar as relações entre os actores sociais e as respectivas trajectórias nos processos sociais. O espaço social aparece-nos como um campo de força multidimensional de posições ou de interacções entre os diversos actores, de acordo com a origem social e respectivos status, que cada um ocupa numa determinada sociedade.
A Família representa uma das estruturas fundamentais da dinâmica social e da socialização dos indivíduos em função do seu capital simbólico e material, definindo a partir da sexualidade, do espaço social e dos recursos materiais e culturais, fundamentais no processo da reprodução social. Para Bourdieu, as estratégias de reprodução funcionam como mecanismos reguladores e reclassificadores dos indivíduos no contexto da vida social.
Por outro lado, a Casa e o Grupo Doméstico integram-se também num complexo património ideológico-cultural, contribuindo desta forma para a definição e estruturação de um conjunto complexo de regras e de códigos orientadores das configurações dos actores sociais no contexto das relações de parentesco. Neste contexto, o nome da Casa, da Família é fundamental para a classificação do individuo na estrutura social e politica local e é também um elemento importantíssimo da identidade e da memória familiar. A reprodução social de um grupo doméstico depende também das formas de gestão e de conservação do património simbólico e material de cada casa e da maneira como se faz a gestão e a manipulação da memória familiar. De salientar, a importância social da memória em torno de uma linhagem, bem como da forma como se manipula a memória.
A dinâmica identitária das Casas e dos Grupos Domésticos desenvolve-se dentro de processos de socialização de acordo com as coordenadas do espaço-tempo, fundamentais para a definição da casa e do grupo doméstico. Ao redor de cada Casa e de cada Grupo Doméstico definem-se papéis e posições e se expressam valores e ideologias, bem como se afirma a construção de uma identidade que visa essencialmente a valorização de uma memória, capaz de recriar o passado de forma a actuar sobre o presente e a projectar-se num futuro. A elaboração de uma memória social em torno da Casa fortalece a Casa, a Linhagem e o Lugar. Um lugar da própria casa, ou lugar da identidade partilhada, enquanto lugar comum para aqueles que habitando-a juntos, são identificados como tais, por aqueles que não a habitam, mas que a partir dela se posicionam no espaço social desse lugar. Neste sentido, as casas distinguem-se umas das outras, como se se tratassem de corpos humanos. Cada uma comporta a sua memória, a sua topogenia, a sua identidade. Cada casa permanece assim fiel à sua herança, à sua linhagem, reivindicando para si, uma identidade que se afirma no espaço local e regional. A Casa tem assim uma duração própria, onde os homens podem encontrar um símbolo de resistência e de continuidade, de tempo da história, a partir do qual se podem experimentar estilos, modos de vida, vocabulários, funções e recordações de outros tempos.
Este realidade é visível nas Casas Grandes da região. Casas Brasonadas, grandes de granito, com implantações monumentais umas, outras mais escondidas e camufladas por entre o arvoredo secular de carvalhos e de plátanos. Casas grandes com brasões que identificam linhagens, parentescos e outras alianças, na conjugação de valores simbólicos e sociais de elevado prestigio. Estamos na presença de edifícios em U com pátio aberto à rua, construídos em granito da região, numa morfologia que se quer orgânica e amiga da topografia da terra. Na presença de dois corpos construídos em granito e cobertos de telha, com acesso por um escadório central ou lateral à casa, rematando numa das extremidades com a capela onde se rezam terços e avé-marias.   
A Casa Grande destaca-se geralmente pela sua imponente massa arquitectónica, impondo-se à admiração de todo aquele que por alí passa. Não é uma Casa vulgar, mas sim, uma casa de aspecto senhorial, rica de lavores de cantaria que revelam bem o nível artístico do mestre pedreiro. Formada geralmente de um só corpo, de rés-do-chão e primeiro andar, com capela, com frontaria, varanda com balaústres e na linha do beiral bastante saliente, erguendo-se a meio, em alto arco, cravado a pedra de armas – o brasão da linhagem.
Algumas destas casas possuem elegantes portais, janelas emolduradas com rendilhados estilizados, frontarias de rara beleza. A sua grandiosidade está associada ao magnifico portão que dá para um vasto terreiro, cercado por um muro e respectiva cerca. No interior da cerca encontramos fontes, jardins, árvores centenárias. Do terreiro temos acesso a um pátio através de uma escada de granito que nos leva para a zona de serviço e de trabalhos domésticos, e a partir deste pátio temos acesso à cozinha e ao quintal que dá acesso ao corpo central da Casa. A monumentalidade, a sua cenografia singular, a sua presença e a sua identidade fazem destas casas marcos de referenciação no mapa espacial do local.