segunda-feira, 5 de maio de 2014

A Reconstrução da Cidade




Apetece-me falar da cidade que foi destruída em nome do progresso, da modernização, da qualificação dos seus espaços públicos e privados. E esta vontade bem a propósito da minha leitura do livro de Manuel Delgado, "La Ciudad Mentirosa" (2010) sobre os problemas da renovação e reabilitação da cidade de Barcelona e suas consequências no direito à cidade e à habitação por parte dos moradores dos antigos bairros com a construção da Torre Mapfre, o Hotel Arts; a remodelação de Poble Nou, o novo desenho do novo bairro 22@ - destinado à instalação de hotéis e novas empresas, a instalação do bairro de luxo Diagonal Mar, etc.

Barcelona tal como o Porto também tinha ruínas, memórias, tempo e espacialidades e pessoas no seu centro. Era uma cidade dos sítios e dos lugares de encontro e de desencontro. A cidade velha, antiga e fora de moda. Onde se habitava como se podia e ninguém levava a mal por isso. Mas também era a cidade do património, da arquitectura, dos espaços abertos, dos jardins e das praças.

O Porto é a minha cidade. Um dia decidi vir para o Porto. Primeiro como aluno no Liceu Rodrigues de Freitas, mais tarde na Universidade do Porto e por fim como a minha cidade do trabalho e realização profissional. A cidade do Porto despertou em mim uma paixão e um amor avassalador por estas ruas, praças, becos e jardins. Mas foram os seus cafés, teatros e cinemas que me seduziram e me levaram a conhecer e a interagir com os artistas, intelectuais e políticos da cidade.

O Porto foi sempre uma cidade das ruas e das pessoas que caminhavam com pressa e falavam com sotaque tripeiro. De todo um povo que vivia na cidade apinhada de gentes, de comerciantes e de burgueses janotas, vestidos à moda de Paris e de Londres. Da arquitetura moderna que em consequência do progresso e do capitalismo industrial se foi instalando nas periferias dos cascos medievais. O Porto teve o seu Almada que rasgou a cidade e a projectou no vertical para fora das muralhas apertadas e saturadas de gentes, de casario e de comércios. Barcelona teve em Cedrá esse ponto máximo de urbanismo geométrico, onde a malha e o quadro rasgaram memórias e projectaram planos.

Mas, a cidade mudou, transformou-se, modernizou-se para o bem ou para o mal dos nossos pecados. Evidentemente, que a mudança e a transformação fazem parte da matriz urbana de qualquer cidade histórica. O problema é que a nossa cidade transformou-se de forma muito radical. E nessa radicalidade perdeu, destruiu e estetizou o seu património, as suas casas, os seus edifícios, os seus palácios, as suas ruas e praças.

As memórias da cidade burguesa desapareceram, e com elas as suas oficinas, as suas industrias com operários e operárias, que saiam aos "magotes" ao fim do dia de trabalho. A cidade do trabalho, da maquina, dos operários sujos e embrutecidos.

A cidade industrial deu lugar à cidade criativa e estilizada, dos centros comerciais, dos parques temáticos, dos fóruns culturais e das galerias modernas. A cidade limpa, dos espaços abertos e homogéneos, das praças duras e sem natureza e bancos de jardim. A cidade segura para turistas e gente estranha que ocupa as ruas pedonais uniformes sem identidade e sem complexidade cultural. A cidade dos hotéis e dos restaurantes para gente chique.

A cidade do Porto destruiu uma parte das suas memórias, das sua marcas de identidade urbana em prol de uma uniformidade arquitectónica ao serviço de uma globalização estético-formal. A cidade dispersou os seus bairros pelas periferias, expulsou as suas gentes do centro canónico, transformou a cidade antiga num casco em ruína e vazio especulativo ao serviço de rentistas onde o solo é a grande mais valia desta cidade. Destruindo os valores patrimoniais da cultura de rua e das comunidades que habitavam os cascos antigos - desde a Sé a São Nicolau; da Vitória ao Bonfim.

Aliás, as cidades também mudam, como nos recorda Baudelaire quando nos diz que elas mudam mais que o coração de um mortal. Contudo, a mudança em si não é perversa, mas a quem é que serve essa mudança. Aí é que se pode constatar a sua bondade ou a sua perversidade, isto é, quais os interesses dessa transformação. Se eles são um resultado da vontade e aspiração de um colectivo ou se simplesmente eles representam os interesses especulativos de uma grupo de rentistas imobiliários.

Sobre esta problemática da transformação e da reconstrução da cidade, Oriol Bohigas (1997) considerava que o arquitecto o urbanista não se pode deixar influenciar por aquilo que ele chama de "síndroma da pessoa", isto é, uma espécie de romantismo agnóstico. Contudo, esta atitude de Bohigas permitiu algumas das destruições mais ferozes que se implementaram contra a cidade de Barcelona (Manuel Delgado,2007:116 e ss.). 

Laboratório de Habitação Básica e Social - a instalar na Ilha da Bela Vista, Rua D. João IV (Porto)


Laboratório de Habitação Básica e Social - a instalar na Ilha da Bela Vista (Porto, Rua D. João IV)