quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O Espaço Antropológico - complexidade e epistemologia do lugar metropolitano

1. Estar ali...


Como nos refere Geertz (1989:11) a pesquisa antropológica pretende construir análises explicativas dos lugares, dos espaços habitados de forma a construir categorias familiares e ordenadas, como por exemplo, isto aqui é magia, aquilo acolá é tecnologia, etc. No fundo, para este autor o que um bom antropólogo deve fazer, é ir aos sítios e voltar com informação sobre as pessoas que aí vivem, e colocar essa informação à disposição da comunidade profissional de um modo prático, em vez de andar pelas bibliotecas a divagar sobre questões literárias. Considera mesmo que o importante e fundamental são «los tikopia y los tallensi en sí mismos, y no las estrategias narrativas de Raymond Firtth, o los mecanismos retóricos de Meyer Fortes» (Geertz,1989:11). Não estando em desacordo com a importância do trabalho de campo no estudo antropológico de comunidades e suas culturas, não posso contudo deixar passar este dramatismo obsessivo de Geertz contra a construção das narrativas antropológicas sobre estas comunidades e culturas.Pois, considero importante a pesquisa bibliográfica de monografias antropológicas para melhor se compreender o objecto de estudo na sua complexidade epistemológica e metodológica. A leitura e estudo das monografias clássicas não devem ser entendidas como um fim em si mesmo, mas como um instrumento que nos possibilita caminhar na procura de outras leituras e de outras interpretações sobre a mesma ou outras comunidades ou povos e nos possibilita alargar a nossa capacidade analítica e interpretativa dos fenómenos sociais.
Para María Cátedra o estudo antropológico centra-se no problema da descrição -, como se representa a realidade social. Assim, para esta antropóloga espanhola, «el enfoque pues, trata de plantear y compreender el proprio proceso de investigación: las bases epistemológicas de las descripciones, la naturaleza del conocimiento y el análisis etnográfico. Finalmente es un ejemplo definitivo de que el silencio sobre la escritura etnográfica se ha roto» (1992: 9-10).
Qualquer estratégia metodológica pretende sempre atingir um conhecimento complexo e objectivo sobre a realidade que se estuda, seja um bairro, uma rua, uma comunidade especifica, ou até mesmo uma cidade. Para a antropologia do espaço ou para a antropologia urbana uma das suas técnicas mais características é o clássico trabalho de campo («fieldwork») a partir do qual se podem construir narrativas de grande complexidade etnográfica. Sobre a importância do trabalho de campo nas pesquisa antropológica, James Clifford num texto intitulado «On Etnhographic Authority» (1988), proclama, a exigência de trabalho de campo é uma reivindicação de autoridade e  legitimidade cientifica para que se deixe de fazer antropologia de gabinete e se produza verdadeiro conhecimento antropológico. É o trabalho de campo prolongado que transforma o antropólogo num especialista sobre o contexto social que estudou. A legitimidade do conhecimento  produzido pelo antropólogo decorre precisamente do facto de «ele ter estado lá». Nesse sentido, o carácter experimental da forma como foi adquirido o conhecimento é o fundamento da autoridade cientifica (Cfr.Ramon Sarró; Antónia Pedroso de Lima, 2006:17 e ss.).
Mas todo o trabalho de campo per si só não nos permite conhecer e construir narrativas ou discursos sobre uma comunidade ou um bairro, é necessário todo um enquadramento teórico especifico da etnografia e da antropologia, a partir da qual elaboramos um discurso narrativo ou metafórico sobre o objecto de estudo. Associado ao trabalho de campo está a observação participante, que nos permite «face to face», interagir com a unidade de terreno (Cfr. Ervin Goffman, 1994).
A necessidade de ir para o terreno, contactar com as pessoas, com as suas mundividências, com a sua vida quotidiana, partilhar os seus medos e aspirações, etc, é uma forma de conhecer e de compreender o objecto de estudo. Neste sentido, para alguns antropólogos o trabalho de campo é constitutivo do próprio processo de produção cientifica da antropologia e não apenas a estratégia metodológica que define a disciplina (Cfr. Ramon Sarró; Antónia Pedrosa de Lima, 2006: 20-21).
Todo o processo de trabalho de campo decorre ao longo da interacção que se estabelece com a unidade de terreno que se vai estudar, por exemplo, uma «Ilha na Cidade do Porto» implica todo um contexto de trabalho, de inquérito, de entrevista, de registo, de recolher informação -, as notas de terreno. A utilização das novas tecnologias de registo como por exemplo a máquina de filmar, a máquina fotográfica, o desenho de estudo, que os alunos de arquitectura utilizam para caracterizar o sitio de estudo, etc. O que escrever e a onde escrever e quando escrever. São preocupações de todo aquele que faz trabalho de campo e se depara com essas dificuldades. A importância da conversação com as pessoas que residem numa «Ilha»; que vai desde o simples «Bom dia...», até à interpelação «Será que podemos...». A capacidade de transgredir, de invadir o espaço do outro, de forma a recolher a informação necessária para a realização do nosso estudo. Que vai desde a rua até à porta de entrada, com o passar da soleira em granito velho para o interior do corredor comprido que dá acesso ao patio central, no fundo é todo um ritual de integração complexo do estranho que se mistura com os moradores dos bairros. Um ritual de aprendizagem, uma espécie de baptismo antropológico no mundo da ciência social aplicada a um contexto de estudo de caso (Case Studies). A ideia de que «não se pode desperdiçar nenhum momento nem nenhum lugar para escrever alguma coisa que nos pareça importante no decorrer da investigação empírica» (Cfr.Sarró; Lima,2006:23).
Assim, segundo Sarró e Lima (2006) fazer trabalho de campo em contextos metropolitanos significa pôr à prova o verdadeiro desafio da antropologia. Todos sabemos, pelo menos desde que começaram as discussões sobre o trabalho de campo at home, que não é a distância geográfica que promove um olhar distanciado e que a proximidade não é sinónimo de conhecimento (Strathern,1987; Pina Cabral,1991; Lima, 1997). Contudo, a  atitude de «estranhamento» e a problematização do real social é algo que todo o antropólogo tem necessariamente de fazer para compreender e conhecer o lugar de estudo.
Néstor García Canclini (1999) considera que a antropologia dispõe de instrumentos qualificados para entender os sistemas cognitivos e valorativos produzidos em contextos urbanos, as relações da sua estrutura actual com a história, da modernidade com as tradições. Ao interessar-se particularmente pela diversidade que contêm as cidades, a pesquisa antropológica permite sair das generalizações homogéneas habituais dos trabalhos sociológicos, económicos e políticos que preferem falar de totalidades compactas, ou reduzem as diferenças aos indicadores dos censos e das entrevistas (cit.Signorelli, 1999: XI). Canclini reforça também a ideia da importância do trabalho de campo, quando afirma que para compreender o homo urbanus é necessário «explorar, en las interacciones ambivalentes de los sujuetos y los grupos, las peripecias de la multiculturalidade. Se necessitan tanto los censos y estadisticas como la observación densa de lo que ocurre en los espacios produtivos, residenciales y de consumo» (Idem:XI). Estamos perante a valorização de uma espécie de empirismo antropológico, amiúdo limitado a descobrir as particularidades do concreto. Se trata de situar  «a los hombres en el espacio y con la conciencia cultural de esa relación».




2.Habitar ali...





As Ilhas são uma espécie de corredores estreitos, compridos, com casas muito pequenas alinhadas em filha de cada um dos lados do corredor. Outras há que se organizam em torno de um pátio comum, a partir do qual se configuram relações fortes de vizinhança e proximidade. Porta sim, porta não, lá estão elas, uma espécie de ninhos ou conchas, que albergam famílias que no seu interior definem trajectos de vida e realizam os seus sonhos e aspirações sociais e culturais. A sua localização na cidade, permite-lhes usufruir de um estatuto de cidadania plena -, de pertença à cidade. Elas são cidade, elas fazem cidade. As ilhas da cidade do Porto inscrevem-se assim num sitio, num lugar com história e memória que se perde no tempo da longa duração da história da cidade. São uma espécie de elemento material e simbólico importante na construção da identidade cultural da cidade do Porto. Mas, elas também foram vitimas da segregação de higienistas e políticos que viam nas ilhas a fonte de todos os pecados urbanos(Cfr Ricardo Jorge,1897, 1899).
Estas Ilhas com a sua toponimia, muitas vezes associada ao seu senhorio ou a algum elemento cultural ou  natural, como por exemplo, a «Ilha da Oliveira», a «Ilha do Poço», a «Ilha da Fama», a «Ilha do Tiço», a «Ilha do Geno», traduzem as suas idiossincrasias tipológicas e culturais. Actualmente, as suas populações são muito diversas e multiculturais, dando a estas tipologias um certo ar de espaços pós-modernos globalizados. Outras, mantêm a sua matriz inicial, com as mesmas populações que aí habitam à mais de três e quatro décadas, algumas inclusive aí já nasceram e casaram e continuam a manter esta relação de residência com os mesmos vizinhos e as mesmas casas. Existem casos, como o da D. Celeste (com 86 anos, natural de Celorico de Basto), que aí criou os seus dois filhos, hoje formados pela Universidade do Porto, e os seus três netos, que sempre vieram brincar para o pátio da sua ilha. Ainda, hoje, um dos seus netos professor no ensino secundário no Concelho de Castelo de Paiva adora visitar a sua avó e dormir na sua ilha como gosta de lhe chamar.

Nota: continua...mas pode ler e consultar entretanto!




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