domingo, 5 de dezembro de 2010

Poética do Habitar - as "Ilhas" no Vale de Campanhã (Porto)

















Espaço e ambiente

O rio Tinto e o rio Torto são dois pequenos afluentes da  margem direita do rio Douro e, cuja dinâmica está extremamente dependente da que se verifica neste último. A morfologia actual da área é nitidamente comandada pela tectónica, já que esta área encontra-se nitidamente desnivelada relativamente a toda a plataforma oriental, onde praticamente se circunscreve toda a restante cidade do Porto. Facto relacionado com uma importante falha de direcção NNW-SSE, que por sua vez define a escarpa de Campanhã e condiciona o rio Douro a montante da confluência do rio Tinto e Torto.
A influência da tectónica é ainda nítida nalguns pequenos afluentes destes dois rios definindo pequenos vales de fractura.Assim, como condicionando pequenos troços dos percursos destes dois cursos de água que drenam toda a área do chamado Parque Oriental da Cidade do Porto. A natureza tectónica e litológica explica os fundos de vale aplanados que se encontram na parte final do percurso dos rios Tinto e Torto, constituído por terrenos aluvionares, onde se desenvolvem solos profundos e férteis (Pedrosa,1995).
Ambas as bacias hidrográficas drenam uma pequena área e apresentam uma forma extremamente alongada. A ocupação do solo nesta área pode individualizar-se em três conjuntos: o primeiro (iº) em área construída; o segundo (iiº) em área agrícola; e o terceiro e último (iiiº) em área florestal.
A área construída corresponde a antigas quintas rurais, a pequenas povoações, a caminhos e ruas, becos e travessas, calçadas e muros, silos e azenhas, moinhos.
A área agrícola pode-se distinguir em agricultura de fundo de vale e de agricultura de socalcos. A agricultura praticada nestas áreas é temporária com especial realce para os produtos hortícolas, facto que se deve à sua inserção numa área urbana. No que se refere à área florestal é interessante notar que a diversidade é bastante elevada, pois, coexistem espécies tipicamente mediterrâneas, com algumas que demonstram a influência do clima mediterrâneo.
O espaço construído esta em plena sintonia com a realidade morfológica do seu território, configurado e estruturado pelas duas bacias hidrográficas que acabamos de caracterizar em termos de complexidade ambiental e ecológica.

Antropologia do habitar

Estamos num espaço onde as novas formas do habitar, contribuíram para o aparecimento de algumas rupturas com a matriz originalmente rural. Aparecem um conjunto considerável de habitações diferenciadas, clandestinas e ilegais umas e outras integradas em programas nacionais de habitação social. As casas unifamiliares, são na sua maioria propriedade dos seus ocupantes, produto de uma auto-construção total ou parcial, de fraca qualidade arquitectonica, sem acabamentos e sem infra-estruturas, isto é, estamos perante a inexistência de água ao domícilio, sem saneamento, sem transportes públicos, sem acessibilidades. Estamos perante uma terra de ninguém perdida no espaço difuso do peri-urbano portuense. Um fenómeno urbano de profunda transformação do território à escala local e regional com a urbanização e construção das manchas periféricas às cidades consolidadas. É a conversão das terras agrícolas e a passagem acelerada do rural ao urbano difuso e desta forma também ele insustentável quer do ponto de vista ecológico e social. No fundo é a  civilização e a cultura urbana que estão em causa (Harvey, 1992; Rodriguez Gonzalez, 1999).
Existe, uma articulação entre modos de habitar e modos de viver, e consequentemente uma inter-relação com  o espaço periférico onde se contextualizam estas narrativas urbanas de sofrimento e de dor, vitimas da exclusão e da pobreza urbana (Rodrigues, 2000).
Neste território urbano caótico com uma quase total ausência de infra-estruturação e onde o desleixo urbano são a regra, vamos encontrando ali e acolá, situações de profunda dramaticidade social e ambiental. São corredores feitos de madeira, de tijolo e pedra, escuros e frios, sem alma nem coração, com mais de 30 metros de tubo negro, apinhados de gentes, de crianças, de velhos, de doentes e desempregados, sem água de rede pública, sem saneamento, sem segurança, sem contexto e identidade. Chamam-lhes "Ilhas" em Portugal, no Brasil são conhecidos por "Cortiços" e em Espanha por "Currales".
Na rua de Bonjoia, n.º528, encontramos uma "Ilha" onde moram 35 pessoas. Cada tipologia que integra este corredor social é composto por um quarto, uma cozinha minuscula, uma retrete colectiva ao fundo deste estreito corredor. O espaço comum é uma tira comprida de tubo preto e frio que serve de lugar de encontro, de lugar de conflito e de tensão entre vizinhos e familias que aí residem. Cada residente pinta a sua pequena fachada (entre 1 a 2 metros de frente), geralmente com cores vivas, fortes, que gritam dentro deste corredor, autênticas instalações artísticas feitas de pele e osso.Uma das mulheres dispara, perante a nossa presença no recinto «moro nesta ilha desde à 32 anos...agora já existem criancinhas cá dentro...aqui é tudo familia...o meu cunhado é irmão do meu marido...São umas casas muito pequeninas...esta aqui (vizinha) precisava de uma casinha maior, nem um quartinho tem para o filho que dorme na sala». Afirma, ainda Rosina (de nome Judite da Costa Rocha) o «bairro da Mitra foi um pesadelo que por aqui passou. Eles nunca nos fizeram mal, nunca nos roubaram, eram muitos educados, que  miséria aquela, dava dó». Neste discurso directo, ingénuo mas puro, esta mulher fala-nos também do amor à ilha e à rua. Uma espécie de topofilia sobre o pequeno mundo onde se vive, onde se nasceu, ou onde nasceram os seus. Independentemente das difíceis condições de habitabilidade e de salubridade destas tipologias populares e urbanas. 
Falou-nos também da deslocação de antigos residentes da rua de Bonjoia, e alguns deles seus familiares que foram forçados a ir viver para as Cooperativas de Habitação Social de Pego Negro. Da boca de Rosina sai um trago amargo sobre esta realidade social, uma espécie de protesto e de grito social, quando nos atira à cara «as pessoas que sairam foram bem tristes...elas foram aqui nascidas e criadas...a gente sabe no meio em que vive, mas depois nem sabe para onde vai». Neste pequeno relato esta bem patente a importância das relações sociais, dos vínculos de pertença a um grupo e comunidade, quer por sangue ou por afinidade, elementos estruturadores da boa convivência e de uma socialização inclusiva. Aliás, Rosina, noutro depoimento declara que «a minha mãe saiu daquipara as Cooperativas do Pego Negro, são casas muito frias, esta no terceiro andar, são umas casas muito altas». Estamos perante a angustia do viver num apartheid urbano, onde o  sentimento da exclusão social, por via de uma quase deportação silenciosa e politicamente injusta, por que é desumana e socialmente cruel.
Rosina também nos fala do amor que tem a sua casinha em detrimento da rua. Rosina não gosta da rua. A rua é um espaço triste, escuro de noite e feio de dia. Um sitio de conflitos, de bêbados e de putas à mistura com trafico de tudo. 
A sua casinha é uma espécie de casulo que tem varanda grande, cozinha é pequena, um quarto, um corredor e um jardim. Diz-nos sem papas na lingua, «Eu, sinceramente, camarários não». Recusa ir viver para os bairros massificados dos blocos de cimento do Pego Negro.

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