sábado, 7 de janeiro de 2017

Porto, Cidade Vazía: emparcelamento, soluções formalistas e fachadismo


 O "Porto, Cidade Vazía" remete-nos para a problemática da renovação e da reabilitação da cidade densa perante novos interesses, novos capitais, novos programas e novas escalas que associam novas funções e novos actores.

Deparamos com o aparecimento de novos problemas e com o agravar de outros que já vinham das décadas de 50 e 70 do século XX. Neste sentido, não podemos ignorar  o que se passou durante a implementação das políticas de habitação na ditadura do Estado Novo, onde se promoveram deportações em massa de moradores das freguesias do centro da cidade para as periferias dos blocos das casas económicas construídas a partir do Plano de Melhoramentos para as cidades de Lisboa e Porto.

Estamos a falar da especulação imobiliária. Da subida do preço por metro quadrado para valores fortemente especulativos na cidade do Porto e de Lisboa. Da pressão dos proprietários e das imobiliárias sobre os antigos residentes que começam a ser pressionados para abandonarem estes lugares no centro da cidade. A deportação das classes mais vulneráveis e pobres para os blocos periféricos, como por exemplo: Cerco, Lagarteiro, Contumil, Ramalde, etc. 

Assistimos nestas últimas décadas a uma des-temporalização e a uma des-localização da vida na cidade do Porto, pensamos a nossa vida e estruturamos a nossa identidade ( o nosso self) a partir da cidade do centro, mas vivemos na cidade periférica do não-lugar. Vive-se no Lagarteiro ou no Cerco (uma espécie de gavetas onde se acumulam familias inteiras sem memória e sem cidade) mas as nossas memórias, as nossas referencias de vida, as estruturas socio-antropológicas da comunidade de pertença à cidade estão nos bairros e ilhas localizadas nas freguesias da Sé, Miragaia, Santo Ildefonso, Bonfim, Cedofeita, etc.

Este programa político de deslocalização e de deportação dos moradores do centro da cidade para as novas periferias, teve como fundamento as teses da higienização e da salubridade, do sanitarismo público e da segurança, promovidas pela ideologia do regime e apadrinhadas pelo emergente capitalismo burguês da cidade que aspirava à expansão da malha urbana para lá dos limites físicos da cidade consolidada. Sem esquecer o papel ideológico da "casa nova" fora da cidade como instrumento sedutor da deportação. A oposição entre o "habitar os cortiços doentios das ilhas" e o "conforto higienista" da casa nova ao serviço de uma ideologia que tinha como suporte uma moral asfixiante e bloqueadora das aspirações e das mobilidades sociais.

A deslocalização e a deportação destas famílias que viviam na cidade para outros não-lugares, provocou uma perda de noção de pertença ao espaço social e cultural da cidade, bem como agravou o sentimento de desintegração sobre o efeito de estilhaço nas identidades individuais dos grupos sociais mais vulneráveis, acentuando de forma preocupante situações de grande exclusão.

Este problema agrava-se ainda mais na cidade antiga, quando o valor económico anda associado ao valor imobiliário. Esta associação capitalista vai acelerar os fenómenos de deslocação e de desterritorialização (do centro para as periferias) com a consequente perda do território, da casa, da comunidade, do trabalho, dos laços familiares e de vizinhança.

Assistiu-se nestas últimas décadas a um processo de desurbanização progressiva, o que nos leva a falar de um período de pós-arquitectura, de pós-urbanismo ou de pós-urbanidade: o espaço urbano entendido como lugar de memória e de tempo, carregado de sentidos simbólicos, capaz de propiciar  o reencontro com acontecimentos colectivos memoriais, e per si, capaz de reactivar sociabilidades dilui-se com a implementação das cidades temáticas (turistificadas) e zonificadas, monofuncionais e hiper-especializadas. Com a valorização de um urbanismo de miniatura, anárquico, próprio da cidade caótica e fragmentada.

O lugar urbano foi aos poucos convertendo-se no seu oposto, o não-lugar. É o aparecimento de empreendimentos imobiliários de mega-escala, a partir do emparcelamento de pequenos lotes da morfologia da cidade antiga que  fazem a promoção de programas fortemente especulativos e erosivos da identidade socio-económica e cultural das cidades.

Assiste-se à intervenção por parte dos poderes locais e nacionais ( ver por exemplo: o aparecimento de Sociedades de Reabilitação Urbana, com autonomia nos licenciamentos e na alocução de fundos a programas de renovação/reabilitação independentes da Fiscalização Política ), a implementação de ARU`s, com a introdução de instrumentos fiscais e de capitais públicos e privados, etc.

A implementação destes  grandes processos de transformação urbana, conduzem ao aparecimento de situações fortemente especulativas, com a expulsão dos vizinhos mais incómodos ( pobres, velhos, reformados, jovens sem recursos, imigrantes, estudantes, etc. ) em beneficio de um novo sector dominado por lofts, lojas de moda, hostels, alojamento local, hotéis de luxo, restaurantes e bares destinados a turistas e a gente de "nível".

Estamos assim, perante a implementação de estratégias que favorecem a tematização e a espetacularização da cidade e da vida urbana. A substituição da cidade das pessoas por uma espécie de parques temáticos, gentrificados por novas classes detentoras de um poder económico que inflaciona as rendas e o solo urbano.

O aparecimento de programas de reabilitação que destruindo o interior dos edifícios promovem o emparcelamento da propriedade urbana com o aparecimento de  um fachadismo estilístico e vazio de sentido histórico e cultural.

Estamos perante o empobrecimento social e arquitectónico da nossa cidade. Esta nossa visão não significa que se negue a necessidade de qualificar e transformar a cidade. Mas, esse processo de renovação deve ser implementado segundo os Princípios do Direito à Cidade para todos sem excepção. O que se critica é o facto de se entender que na cidade antiga não possam viver lado a lado todas as classes e grupos sociais, sejam eles: operários, estudantes, banqueiros e tecnocratas, reformados e imigrantes.

O centralismo simbólico não pode ser um instrumento ao serviço da integração dos mais ricos e da expulsão dos mais pobres!




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