Por Fernando Matos Rodrigues
Falar sobre cidade e habitação a
partir da complexa e densa obra construída e projectada do Arqto Agostinho
Ricca (1915-2010) é sem dúvida um desafio e uma provocação epistemológica sobre
a função da arquitectura e do arquitecto na cidade. É também elaborar uma
reflexão crítica e interpretativa sobre as últimas décadas da história da
arquitectura na Europa e em Portugal. Enquadrando esse mesmo percurso entre a
afirmação do Movimento da Arquitectura Moderna num contexto nacional dominado
por uma ideologia conservadora que procurava na memória histórica a afirmação de
uma arquitectura revivalista.
Aliás, sobre esta realidade Manuel
Mendes, considera que a «partir de meados da década de 40, a casa unifamiliar,
isolada ou de continuidade, singular ou agrupada, folclorizada num culto
anacrónico e patológico do estilo português e portuense, serviu quase
exclusivamente à consolidação-consagração de bolsas-bairros da elite portuense,
nomeadamente na zona das Antas no sector oriental da cidade, e na zona de Gomes
da Costa no sector ocidental»[1].
Com o advento do Movimento Moderno a
arquitectura integra-se num processo de valorização das transformações e das
utopias sociais, dá outro sentido estético e ideológico aos pretextos
funcionalistas, relaciona-se também com os movimentos plásticos, de forma a
construir uma identidade e uma autenticidade arquitectónica, tendo como base a
racionalidade construtiva e a produção estandardizada.
É neste contexto internacional de
forte criatividade e inovação conceptual e construtiva, que a obra de Agostinho
Ricca se integra e evolui de forma a acompanhar as contradições e as limitações
espitemológicas de um programa de arquitectura que se pretendia simbólico e
fracturante.
Agostinho Ricca vai desta forma construir um
pensamento arquitectónico que tem a sua genealogia no Movimento Moderno. É um
arquitecto claramente empenhado no e do movimento moderno. Neste sentido, vai
acompanhando as contradições e as redundâncias, as crises e as mudanças desse
mesmo movimento, dando força a uma necessidade de superar esses obstáculos com
a afirmação e a valorização das suas preocupações funcionais e construtivas inseridas
numa sensibilidade arquitectónica que se traduz na valorização do desenho, da
expressividade, da luz e da poética dos detalhes construtivos dos novos
materiais que utiliza nas suas obras.
Daí se pode afirmar, que o desenho na
obra arquitectónica de Agostinho Ricca é uma espécie de ortopedia dos sentidos,
como possibilidade construtiva de epifanias da luminosidade espacial. A
arquitectura assume com Ricca o seu lado mais poético e imagético, dando
sentido antropomórfico aos espaços interiores que constrói em relação profunda
com a natureza dos materiais: o betão, a madeira, o vidro, o tijolo maciço e o
aço.
Agostinho Ricca, faz-se arquitecto com uma
arquitectura na e para a cidade. Num país que vive em profundo anacronismo
estético e ideológico, ancorado ainda numa estrutura social e política
pré-moderna, que não aceita e repudia as gerações novas, que persegue e exclui
as utopias sociais. Um país que recusa o novo da modernidade e que se refugia
na identidade e na memória manipulada ao serviço de uma pátria que já não era
de Junqueiro nem de Álvaro de Campos.
Lá “fora” o tempo era de mudança e de
complexidade. De inovação e de criação transversal a todas as artes. José
António Bandeirinha, considera que no moderno «mais do que uma colecta de modelos
em mimese formal, lexical ou normativa, ganhava corpo, um sistema de
aproximação entre método e obra que encadeava o devir social, as práticas
projectuais, as percepções do espaço, a identidade e a autenticidade das
matérias, as actualizações racionais da capacidade construtiva, a produção
estandardizada, as tentativas de normalização dimensional, e, por último, a
expressão plástica potenciadora pela descoberta da adaptabilidade dos novos
materiais»[2].
Com o advento da modernidade criam-se condições para a recusa das convenções do
passado, em benefício da utopia social e urbana.
Neste vértice de crise da
modernidade, Agostinho Ricca vai se confrontar a si e à sua obra, com um pensamento
moderno já dominado por um conjunto diversificado de problemas e de
contradições. Contradições, essas, que estão na origem da sua crise ou da sua
transformação como Homem e como arquitecto. É o aparecer de um conjunto de
redundâncias técnicas que opunham racionalismo versus naturalismo,
expressionismo versus estilo internacional, funcionalismo versus organicismo. Manuel
Mendes, sobre o projecto em Agostinho Ricca, para uma casa em andares de duas
frentes na Rua de Fernão de Magalhães (1945)[3],
se dá conta do duro constrangimento portuense, é também o grito do homem moderno
que «corre, em vão, atrás de um presente a cada instante cheio de uma fabulosa
e excessiva riqueza, em face da qual morre de sede» (E. Lourenço)[4].
Contudo, a arquitectura assume um
corte com o dogmatismo inicial do Movimento Moderno assente na Carta de Atenas,
com o entendimento de que a arquitectura é também o resultado de um sistema
complexo, de relações que torna possível a integração da técnica e das artes. O
princípio de que a forma era «razão mais que suficiente» para satisfazer as
exigências da qualidade espacial, deixa de responder às suas preocupações da
qualidade espacial e poética na sua arquitectura.
Em Portugal, a década de 50 vai ser
um período de transição e de forte reflexão critica para com o jovem Arquitecto
que inicia a sua aventura como professor na Escola de Belas Artes do Porto. A
crise do Movimento Moderno na Arquitectura, dá origem a um processo de procura de
referencias locais, de contextualizações dando origem a explorações
organicistas e regionalistas criticas que vão ter no Inquérito à Arquitectura
Popular Portuguesa (1955 e editado em 1961) o seu marco referencial para abrir
o caminho a uma ruptura e a uma transformação de todo o pensamento do programa
arquitectónico moderno nacional com uma vertente mais humanista e cultural.
Esta crise do Movimento Moderno assinala em Portugal o retomar do sentido
integrador que parece constituir uma constante da arquitectura portuguesa[5].
Na cultura arquitectónica portuguesa está bem presente a confrontação entre
dois lados bem distintos. De um lado a questão da tradição construtiva e do
outro lado, a questão da modernidade e do regionalismo. É neste ambiente de
resistência face a um conservadorismo oficial, e também a um esquematismo do
Estilo Internacional que nasce o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa.
Neste contexto, o arquitecto e a sua
obra dialogam com a cidade, com a rua, com o lote em branco que se deseja ser
cidade. Procura fazer do desenho uma aproximação ao lugar, ao sítio, dialogando
com os contextos e com as identidades construídas da envolvente, sem
constrangimento e sem oposições dogmáticas e híper racionalistas. O projecto é
um instrumento ao serviço da harmonia, da beleza e da integração das massas e
dos volumes em contextos de cidade. O projecto é assim, uma obra singular que
se afirma na cidade com essa vontade forte de também querer fazer cidade. Jacinto
Rodrigues integra a arquitectura de Agostinho Ricca, na conjugação dos
princípios da racionalidade do moderno, na multiformalidade do organicismo e na
poética construtivista. Projectando novas formas, novas espacialidades, novas
linguagens que se traduzem numa gramática expressiva e harmónica de grande
densidade poética, capaz de criar outras escalas e outros volumes, outros
detalhes e outros cenários. A sua arquitectura permite ao Homem experienciar
outras experiencias espaciais com a criação de cenários de grande intensidade
espiritual e estética como é o caso do Parque Residencial da Boavista (anos 60
e 70). Permite a descoberta de outros territórios, de outros contextos, outras
interioridades, de outras circulações e de outras interacções. Estamos perante
uma nova concepção do espaço, da cidade e da habitação. Um polimorfismo espacial que se conjuga com
uma hierarquia espacial, de espaços de dentro e espaços do fora, uma taxonomia
construída a partir de horizontalidades semânticas e de verticalidades
graficamente evoluídas para um sentido escultórico do objecto arquitectónico,
mas integrador do habitar no contexto urbano. O exemplo, que melhor traduz este
sentido de topos, é o caso do Edificio de habitação Montepio Geral, construído
em 1960-61, na Rua Júlio Dinis no Porto. Com esta intervenção arquitectónica
procurava-se a afirmação de que a arquitectura deve dialogar e se possível deve
inscrever-se num lugar, num sítio, numa história e numa cultura. Estamos na
presença de uma construção que faz a articulação entre o espacial e o social, o
consolidado e o emergente, o contínuo e o descontínuo, o fragmento e o todo
absoluto.
A construção remete para os padrões
do movimento moderno, no etanto, a concepção global , organizada em função do
lote, do sitio, da rua, representa uma evidente libertação dos princípios ortodoxos
dos CIAM, propondo uma noção de espaço mais organicista, onde o detalhe, o
ritmo, a harmonia como que procuram a construção poética dos sentidos. Estamos
a falar dos casos do Edificio de Moradias, construído em 1949 na Rua João de
Deus. Um bloco de moradias unifamiliares, onde o sistema é o esquerdo-direito,
com escada principal. Com este sistema evitam-se custos com a construção de
galerias, desperdício de espaço, evita-se a uniformidade das tipologias,
garante-se uma relação mais directa com a rua, com a cidade e o mundo exterior.
Valorizando a individualidade da pessoa, integrando-a em espaços com identidade
urbana significativa e desta forma garantia o direito à cidade. Num espaço
heterogéneo que se materializa em forma de concha onde o ser é “coisa”
heterotopica.
Estamos na presença de uma
arquitectura de grande complexidade poética que nos remete para a valorização
de um sentido de Tempo e de Espaço. Integrado numa fenomenologia de um espaço
luminoso, etéreo e cosmológico.
[1] Cf.
Manuel Mendes, Guia de arquitectura
Moderna Porto 1901/2001, Porto, edição Ordem dos Arquitectos e Editora
civilização, 2001.
[2] Cf. José
António Bandeirinha, “A Arquitectura Moderna: o grau zero da memória”, in Arquitectura Moderna Portuguesa 1920/1970,
p.24
[3] Esta
casa não passou de projecto, isto é, não veio a ser construída.
[4] Cf.
Manuel Mendes, Op. Cit. 2001.
[5]
Ver o caso paradigmático da Casa que Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira projectam
para Vila Viçosa , em 1958, onde pela primeira vez é encarado o processo de
humanização em curso com um realismo sem precedentes e assim, se transformando em tese
experimental. A importância de responder ao problema colocado pelo sitio, pelo
ambiente e pela cultura dos utilizadores, opondo-se claramente à moda de
conseguir artificiais efeitos plásticos, ao gosto dos funcionalismos do Estilo
Internacional.
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