Este nosso estudo centra-se na complexidade histórica e
antropológica das relações socio-económicas e políticas em torno da casa, da
gestão do seu património familiar e também das relações de parentesco
estruturadas e estruturantes desde o espaço local ao espaço regional. Sem
duvida, um conjunto de reflexões em torno das relações de parentesco, e das
estratégias matrimoniais, cujo principal fim é a conservação e a ampliação do património
simbólico e material das respectivas famílias / casas.
Bourdieu sobre esta problemática considerava normal a
passagem e a reconversão do capital simbólico em material. Para este autor, o
capital simbólico concentra em si, todo o tipo de relações e de alianças, que
vão desde a honra, os direitos e os deveres acumulados ao longo de gerações
sucessivas, que se mobilizam em circunstâncias extraordinárias (1980:202).
Assim, sendo, capital material e capital simbólico são
uma espécie de marcas que exibem a força material e simbólica, representada por
aliados prestigiados, que as grandes famílias se esforçam por organizar, em
torno de certas exibições onde o capital simbólico é uma presença forte,
constante e subtil. As cerimonias festivas entre parentes, as solenidades
matrimoniais, as festas religiosas dos santos padroeiros, o apoio a peregrinos,
a pedintes. Tudo serve para a afirmação da honorabilidade e do prestigio dos
parentes e da Casa.
Estes comportamentos fazem parte da socialização
quotidiana destas Familias e destas Casas Grandes, através de um conjunto de
acontecimentos festivos e cerimoniosos, dos quais o casamento, o nascimento e a
morte são momentos de afirmação da Familia e da Casa, para a estruturação simbólica e material das
relações sociais mais amplas, entre os diversos actores sociais e, também entre
as diversas Familias ou Casas da região. Ver por exemplo, a quantidade e a
qualidade de trocas de bens materiais que geralmente envolve este tipo de
cerimónias «o ouro e roupas do meu uso, moveis, prazos, reguengos, direitos e
acções e seus respectivos terços e alma…roupas e prata de meza e chã, milhares
de réis em dinheiro, camas aparelhadas com lenções, travesseiro e enxergão,
colças e mantas…», bem como ainda «águas, animais, bosques, peagens e
portagens,…»
Na região que estudamos, que se circunscreve à bacia do
Paiva e Douro, um espaço agrícola por excelência, que faz a transição entre a
montanha e o vale, as Casas Grandes e suas respectivas famílias estabelecem
entre si, um conjunto diversificado de relações sociais, económicas e
politicas, muitas delas seladas por contrato matrimoniais. Os filhos funcionam
como um elemento vital na manutenção e na ampliação das relações entre Casas e
Linhagens. Linhagens que através de uma definição específica de regras e de
instrumentos, transmitidos de gerações a gerações, permite consolidar um
conjunto de estratégias de administração e de transmissão hereditárias, que têm
como principal fim a conservação do património da casa nas mãos de um só
herdeiro (cfr. Iturra,1983:89).
Estamos a falar da administração do património, da sua
transmissão hereditária e da categorização das pessoas, em função destas
estratégias específicas, cujo objectivo é definir a posição dos indivíduos no
contexto das suas relações, e também em função dos próprios meios de produção,
tanto deles próprios como dos outros.
Neste sentido, a organização familiar nesta região,
estrutura-se em redor da Casa, da Casa Familiar. Entende-se por casa todas as
dependências e estruturas materiais e simbólicas, que de alguma maneira
contribuem para a conservação e reprodução da honorabilidade do nome familiar.
Garante da perpetuidade do bom nome da linhagem.
A Casa apresenta-se aqui, como um sistema de
configurações arquitectónicas e sociais, físicas e culturais, ecológicas e
ambientais, económicas e políticas, enquanto sistema complexo de representações
e de significações ao serviço de uma espécie de grande sistema semiótico.
Porque ela representa, classifica, identifica e individualiza desde o contexto
local ao contexto regional. A Casa afirma-se, quando afirma a sua presença num
espaço hierarquizado e integrado num determinado mapa social.
Estamos assim perante uma espécie de Sistemas Semióticos
que representam formas de organização social, ideias e valores culturais, que
identificam a honorabilidade da linhagem que nela habita ou que nela encontra
um sinal e uma marca de mais-valia simbólica e material.
A arquitectura adquire uma forma de linguagem, e como tal
denota significados socio-culturais e ideológicos, que permitem identificar e
classificar grupos, classes, sociais diferentes. A Casa constitui-se assim,
como um texto dotado de expressão própria, de acordo com os seus protagonistas
e anfitriões. No fundo, ela é uma espécie de gramática espacial da residência,
porque classifica, ordena e produz significação.
A Casa é uma espécie de unidade social primária, isto é, o
nível de identidade social com maiores implicações para a apropriação social do
espaço e para a integração estrutural do individuo. No fundo ela é
estruturadora e estruturante, porque determina e porque classifica trajectos e
mandatos. É no contexto da Casa que se processa a primeira socialização dos
indivíduos, em sintonia com as configurações sociais do meio social envolvente
que integra ou desintegra.
Casa e Familia estão o espaço social local e regional
intimamente associadas, porque ambas dependem da sua capacidade de reprodução
material e simbólica, e da qual, depende a sua durabilidade no tempo e no
espaço histórico do lugar. Sobre esta realidade, Sobral(1995:302) considera que
casa e terra são um símbolo da família e uma parte fundamental da sua memória e
da sua identidade. Realidades plasmadas num Brasão de Armas dos Teixeiras
Pintos; dos Cabrais Lousadas; nos Montenegros; nos Azeredos; nos Queiroz
Ribeiros; nos Matos Coelhos; nos Castelos-Brancos; nos Telles e Noronhas; nos
Botelhos.
Deve-se realçar a importância da terra, da posse da
terra, a propriedade que permite a conservação e a ampliação dos poderes
materiais e simbólicos destas linhagens antigas. Por exemplo, é normal que «em
todas as famílias com propriedade, a memória dos direitos de cada um é
reactivada necessariamente nos momentos de sucessão nos bens – e outrora, como
se vê pelo formulário de contratos, em alguns casamentos (1995:302 e ss.). Um
brasão pode ser pretexto para falar de um antepassado nobre – um visavô, umas
arrecadações arruinadas, parte de um Palácio dos Senhores donatários,
adquiridas por um avó, um motivo para falar deste e evocar recordações de
descendentes dos primeiros (Sobral, 1995:302).
As Casas Grandes e respectivas Linhagens funcionam como
uma espécie de infra-estrutura central num sistema produtivo e reprodutivo da
própria formação social, onde o modo de produção de cada família depende da sua
produção, da sua propriedade e das relações de poder, que por sua vez dependem
da honorabilidade do seu nome, da exemplaridade das suas tradições, da
qualidade das suas relações sociais. Estas ligações sociais permanecem de
importância vital no modo de vida e da reprodução na vida dos seus grupos
específicos, e em tudo aquilo que ele possivelmente transporta de passado, de
memória e de glória.
Nesta região, é muito comum a troca de filhos e de filhas
entre estas Casas Grandes, como forma de angariar alianças matrimoniais que
possibilitem um reforço de posições na hierarquia dos poderes locais e
regionais. As relações entre as Casas de Eiriz (Arouca) e a Casa de Penalva
(Baião), a Casa Vaz Pinto (Arouca) e a Casa de Boco; a Casa de Penaventosa dos Cabrais,
o casamento tem lugar entre conjugues originários do mesmo grupo social ou cuja
situação e recursos tendem a equivaler no momento da sua concretização, é no
espaço da sociabilidade entre estas Casas Grandes que se definem estratégias e
alianças matrimoniais. Destacamos a partir daqui, a importância da Família como
uma categoria social objectivada, isto é, uma espécie de estrutura
estruturante, fundamento da própria Família como categoria social subjectiva,
isto é, uma espécie de estrutura estruturada, categoria mental que é, por sua
vez, princípio de milhares de representações e de acções. As alianças
matrimoniais contribuem deste modo para a reprodução da categoria social
objectiva e também para a reprodução da ordem e hierarquia social (Bourdieu, 1993:34
e ss.). Sobral considera por exemplo, que em relação ao papel da herança na
reprodução dos grupos domésticos locais, as práticas de herança, associadas à
propriedade fundiária, são tidas como factores que podem determinar a
composição desses mesmos grupos domésticos (1993:240 e ss.), e funcionar também
como elementos estruturantes e individualizantes da reprodução social.
Contribuindo, assim, para a definição das estratégias sociais dos indivíduos no
contexto da Casa e do Grupo Doméstico. Vale a pena enfatizar as relações entre
os actores sociais e as respectivas trajectórias nos processos sociais. O
espaço social aparece-nos como um campo de força multidimensional de posições
ou de interacções entre os diversos actores, de acordo com a origem social e
respectivos status, que cada um ocupa numa determinada sociedade.
A Família representa uma das estruturas fundamentais da
dinâmica social e da socialização dos indivíduos em função do seu capital
simbólico e material, definindo a partir da sexualidade, do espaço social e dos
recursos materiais e culturais, fundamentais no processo da reprodução social.
Para Bourdieu, as estratégias de reprodução funcionam como mecanismos
reguladores e reclassificadores dos indivíduos no contexto da vida social.
Por outro lado, a Casa e o Grupo Doméstico integram-se
também num complexo património ideológico-cultural, contribuindo desta forma
para a definição e estruturação de um conjunto complexo de regras e de códigos
orientadores das configurações dos actores sociais no contexto das relações de
parentesco. Neste contexto, o nome da Casa, da Família é fundamental para a
classificação do individuo na estrutura social e politica local e é também um
elemento importantíssimo da identidade e da memória familiar. A reprodução social
de um grupo doméstico depende também das formas de gestão e de conservação do
património simbólico e material de cada casa e da maneira como se faz a gestão
e a manipulação da memória familiar. De salientar, a importância social da
memória em torno de uma linhagem, bem como da forma como se manipula a memória.
A dinâmica identitária das Casas e dos Grupos Domésticos
desenvolve-se dentro de processos de socialização de acordo com as coordenadas
do espaço-tempo, fundamentais para a definição da casa e do grupo doméstico. Ao
redor de cada Casa e de cada Grupo Doméstico definem-se papéis e posições e se
expressam valores e ideologias, bem como se afirma a construção de uma
identidade que visa essencialmente a valorização de uma memória, capaz de
recriar o passado de forma a actuar sobre o presente e a projectar-se num
futuro. A elaboração de uma memória social em torno da Casa fortalece a Casa, a
Linhagem e o Lugar. Um lugar da própria casa, ou lugar da identidade
partilhada, enquanto lugar comum para aqueles que habitando-a juntos, são
identificados como tais, por aqueles que não a habitam, mas que a partir dela
se posicionam no espaço social desse lugar. Neste sentido, as casas
distinguem-se umas das outras, como se se tratassem de corpos humanos. Cada uma
comporta a sua memória, a sua topogenia, a sua identidade. Cada casa permanece
assim fiel à sua herança, à sua linhagem, reivindicando para si, uma identidade
que se afirma no espaço local e regional. A Casa tem assim uma duração própria,
onde os homens podem encontrar um símbolo de resistência e de continuidade, de
tempo da história, a partir do qual se podem experimentar estilos, modos de
vida, vocabulários, funções e recordações de outros tempos.
Este realidade é visível nas Casas Grandes da região.
Casas Brasonadas, grandes de granito, com implantações monumentais umas, outras
mais escondidas e camufladas por entre o arvoredo secular de carvalhos e de
plátanos. Casas grandes com brasões que identificam linhagens, parentescos e
outras alianças, na conjugação de valores simbólicos e sociais de elevado
prestigio. Estamos na presença de edifícios em U com pátio aberto à rua,
construídos em granito da região, numa morfologia que se quer orgânica e amiga
da topografia da terra. Na presença de dois corpos construídos em granito e
cobertos de telha, com acesso por um escadório central ou lateral à casa,
rematando numa das extremidades com a capela onde se rezam terços e avé-marias.
A Casa Grande destaca-se geralmente pela sua imponente
massa arquitectónica, impondo-se à admiração de todo aquele que por alí passa.
Não é uma Casa vulgar, mas sim, uma casa de aspecto senhorial, rica de lavores
de cantaria que revelam bem o nível artístico do mestre pedreiro. Formada
geralmente de um só corpo, de rés-do-chão e primeiro andar, com capela, com
frontaria, varanda com balaústres e na linha do beiral bastante saliente,
erguendo-se a meio, em alto arco, cravado a pedra de armas – o brasão da
linhagem.
Algumas destas casas possuem elegantes portais, janelas
emolduradas com rendilhados estilizados, frontarias de rara beleza. A sua
grandiosidade está associada ao magnifico portão que dá para um vasto terreiro,
cercado por um muro e respectiva cerca. No interior da cerca encontramos fontes,
jardins, árvores centenárias. Do terreiro temos acesso a um pátio através de
uma escada de granito que nos leva para a zona de serviço e de trabalhos
domésticos, e a partir deste pátio temos acesso à cozinha e ao quintal que dá
acesso ao corpo central da Casa. A monumentalidade, a sua cenografia singular,
a sua presença e a sua identidade fazem destas casas marcos de referenciação no
mapa espacial do local.
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