1. Programa, projeto e memória
A intervenção na Ilha da
Bela Vista, localizada na rua D. João IV, freguesia do Bonfim, por parte da
Câmara Municipal do Porto em parceria com o Laboratório de Habitação Básica e
Social e a Domus Social, obedece a um novo programa de políticas de habitação
para a cidade do Porto personificadas na atual liderança da governança da
invicta. Tem como objetivo principal reabilitar, qualificar e incluir socialmente
estes bairros populares com origens no século XIX e que se apresentam como uma
mais-valia para o retorno das populações à cidade. Deste modo, evita-se a
ruína, o desleixo ambiental no interior dos quarteirões, o abandono social e
económico a que a cidade tem sido submetida.
Estes pequenos bairros que
se encontram na cidade consolidada ou canónica, que tradicionalmente identifica-mos
com o nome de «ilhas», foram ao longo da sua existência vítimas de um «olhar
panótico» por parte daqueles que aplicavam a lei e zelavam pela higiene e
salubridade pública. Deste olhar institucional mas não neutro, as
classificações deterioradas das ilhas foram-se sucedendo abruptamente. A sua
classificação pode ser em função dos valores higienistas e da salubridade, como
em função da sua legalidade construtiva. Assim, temos as «ilhas» insalubres e
da tuberculose; ou ainda, as «ilhas» escondidas, ilegais, silenciosas e
clandestinas que se construíam nos lotes traseiros das casas burguesas da
cidade. Toda esta construção estereotipada das «ilhas» do Porto assentou em
estigma e excesso de zelo sanitário, e, contribui para uma narrativa muito
pouco objetivada e cientifica das ilhas.
Hoje, são espaços de onde os
seus habitantes não querem sair, e nos quais mantêm uma relação de vizinhança
assente em valores de fraternidade, de solidariedade e de boa vizinhança. As
ilhas foram sempre classificadas e no nosso entender mal, como uma espécie de
periferia da cidade. A cidade das “traseiras” e silenciosa em oposição à cidade
pública e canónica. Contudo, se casos existem onde as «ilhas» estão integradas
no interior de pátios e nas traseiras dos quarteirões, outras pelo contrário,
estão localizadas em zonas de grande exposição perante os olhares públicos e
são em alguns casos fachadas “monumentais” da cidade.
As ilhas da cidade do Porto
são assim uma espécie de tipologia versátil, básica ao serviço de uma população
recém-chegada à cidade, que procura na industrialização uma possibilidade de
arranjar um emprego que lhes abra as portas para uma desejada mobilidade social
que o lugar de origem (o campo) lhes negava por natureza e condição.
Hoje, as ilhas do Porto
estão integradas na cidade. São património da cidade. São identidade e
referência de um habitar dentro da cidade. Participam da construção dos valores
sociais e culturais que nos servem de referentes histórico-estruturais numa
época mais inclusiva e democrática. Patrocinando os imaginários urbanos mais
diversos no interior e exterior da cidade. Jovens, homens e mulheres,
operários, administrativos, serviçais, artistas, criativos, e a população em
geral procuram na «ilha» uma espécie de retorno à cidade e à comunidade na
valorização de uma vizinhança onde os valores da proximidade possam favorecer e
reforçar os espaços da privacidade e da intimidade tão comuns na nossa «ilha».
A reabilitação da Ilha da
Bela Vista centra-se num programa e num conceito de habitação básica, que se
adapte ao programa da pré-existência. Não é objetivo destruir um programa para
de forma dogmática e impositiva colocar outro sem sentido e sem relação com a
memória e as idiossincrasias do habitar que lhe já está subjacente. Este
programa recupera o conceito de casa como espaço da intimidade e da
domesticidade, numa nova ideologia de habitar próprio das sociedades
pós-contemporâneas. Um programa que permita experiência individual e coletiva
dentro e fora de portas, que articule espaço ocupado com espaço habitado, que
possibilite uma maior interação entre espaço interior e espaço exterior, que
casa e rua, largo e corredor sejam condições positivas de inclusão e de
socialização alargada.
Neste processo de reabilitação, qualificação e inclusão da
Ilha da bela Vista, participaram os Exmos Vereadores e assessores dos
Pelouros da Habitação e Apoio Social e do Urbanismo da Câmara Municipal do
Porto, os técnicos do Laboratório de Habitação Básica e Social, o Gabinete de
Arquitetura IMAGO, os técnicos da Domus Social e a Associação de Moradores da
Bela Vista. Um processo de intervenção- participação que envolveu todas as
partes na discussão e problematização no sentido de encontrar um programa e um
projeto sustentável, eficiente e inclusivo de reabilitação.
Neste programa a parte
económica não sendo determinante é contudo estruturante e (in)formativa.
Estamos perante um programa de casas básicas, de custos muito reduzidos mas
muito eficientes em conforto, segurança e durabilidade. Integradas em zonas de elevado
valor social e cultural na cidade. Zonas infra-estruturadas, equipadas e de
elevada mobilidade. O que se traduz numa redução de custos para qualquer
agregado familiar que aqui habite. A utilização das infra-estruturas públicas e
coletivas contribui também para uma elevada qualidade de vida em termos
económicos, sociais e ambientais.
2.Lugar
de memória na arqueologia de uma «Ilha»
A Ilha da Bela Vista tem
origens num programa e projecto entregue na Câmara Municipal do Porto, que dá
inicio à sua construção em 1870 em terrenos pertencentes a uma antiga
propriedade rural, Monte dos Congregados que era propriedade de Ermelinda
Barbosa de Freitas e de seu marido João Baptista Alves Braga. A Ilha situa-se
na antiga rua da Duqueza de Bragança, que data a sua abertura de 1843. De
salientar que a abertura desta nova artéria urbana que começa no Jardim de S.
Lazaro e se estendia em direcção ao Norte até à periferia da cidade. Sem dúvida
alguma, que, estamos perante uma das mais importantes redes viárias da cidade
do Porto no sentido de que ela vem complementar a estrutura radial das ruas que
os Almadas já tinham traçado para o desenvolvimento do Porto.
O terreno onde foi
construída a Ilha da Bela Vista foi arrendado em 1863 a Luís Ferreira Dias
Guimarães, comerciante na cidade do Porto. Esta «grande parcela de terreno, com
33 metros de frente e 77 de profundidade, foi aforada pela renda anual de
30$000 réis». É nas traseiras desta parcela de terreno que se vai construir a
actual Ilha da Bela Vista.
Como se tratava de um
emprazamento perpetuo, determinado pelo Código Civil de 1867, o que nos explica
a falta de controlo de Ermelinda de Freitas sobre o que estava a ser construído
nos terrenos por sí emprazados. Pois, a perpetuidade dos arrendamentos conferia
maior poder aos locatários, os quais a partir de então, tinham pleno controlo
sobre a utilização destes terrenos nas traseiras das casas burguesas da cidade.
O que explica porque em 1878
o prazo tenha sido vendido a Inácio de miranda Vasconcellos, proprietário. Com
esta negócio Inácio de Vasconcelhos vai maximizar o uso do seu terreno, isto é,
uma faixa contígua à rua foi dividida em cinco lotes para construção, cada um
deles com uma frente de 6 a 6,5 metros e 25 metros de profundidade. O terreno
restante, situado por trás desta faixa, foi reservado à construção de uma Ilha
(a actual Ilha da Bela Vista). Embora em mais pequena escala, este processo tem
muitas semelhanças com o que decorria simultaneamente no Bairro Herculano.
3.
A Ilha da Bela Vista – descrição
1.O terreno das traseiras
dispunha de um acesso independente a partir da rua, por meio de um estreito
corredor a céu aberto, que quase não atingia dois metros de largura, ao longo
de um dos limites da propriedade;
2.Em cada um dos cinco lotes
à face da rua, Inácio de Vasconcelos construi um edifício de dois pisos de boa
qualidade, destinados a habitação burguesa;
3.Nos terrenos
correspondentes às traseiras desses lotes, construi a Bela Vista, a qual,
depois de pronta se compunha de 43 casas;
4.Estas casas, entre as
quais algumas com dois pisos, encontravam-se agrupadas em quatro filhas
paralelas. Duas destas bandas de habitações foram construídas encostadas aos
muros laterais da propriedade e as outras duas, alinhadas costas com costas, ao
centro;
5. Dois corredores estreitos
davam acesso a todas as casas.
4.Critérios
e objectivos do programa
A problemática da habitação
deve ser enquadrada no contexto mais geral dos problemas da cidade e das suas
áreas metropolitanas. Não é um problema isolado e deve ser enquadrado no âmbito
das políticas da habitação e da coesão social, tendo também como referência as
políticas de solo e de planeamento urbano da cidade do Porto.
A planificação urbana deve
ser definida em função de políticas integradoras de acesso à cidade e à
habitação. Integrando e regulando as contradições socio-espaciais, valorizando
a transformação espacial e as mobilidades residenciais, possibilitando que
todos sem exceção possam ter direito à cidade e consequentemente a uma
habitação digna (própria dos dias de hoje), em torno da implementação de um
sistema mais participativo e menos burocrático.
Desde as décadas de 30/40 do
século XX até à atualidade que a política de habitação se centrou na
deslocalização dos moradores das ilhas da cidade para os bairros novos
instalados nas periferias da cidade, em função de programas de renovação e de
melhoramentos da cidade do Porto. A população que habitava nas ilhas, uma grande
parte operariado e serviçais, são atirados para a periferia mal equipada. A
“renovação” e os “melhoramentos” servem de ponta de lança à transformação da
cidade do Porto, justificando deslocalizações e entaipamentos, e dando origem a
uma nova cidade e a uma nova política de habitação. Evidentemente, que durante
este período de experimentalismo e de consolidação de políticas e práticas em
torno da habitação, houve períodos em que o direito à habitação na cidade foi
garantido a partir de programas que se incorporaram na malha apertada e
densificada da cidade velha. Se no início das políticas do Estado Novo tivemos
como modelo a casa individual em total oposição ao imóvel coletivo que era
condenado por razões ideológicas e estéticas pelo regime, a partir dos anos
50/60 temos o aparecimento do bloco como solução padrão para a habitação
social. Aliás, os técnicos da altura, consideravam este modelo como o que
melhor se adapta à modernização emergente do país, consequência da sua
industrialização e urbanização.
Este modelo de bairros
sociais vai dar origem a um conjunto diversificado de problemas, tais como o
desenraizamento das populações, a falta de equipamentos e infraestruturas, a
distribuição aleatória dos fogos, a condução tecnocrata do processo e a alienação
dos habitantes em todas as fases do processo (Isabel Raposo,1996: 57 e ss.).
A habitação em Portugal
continua assim, a ser um problema pela incapacidade do Estado em dar resposta
eficiente e inclusiva, e o mercado não incluir os grupos insolventes na sua
ainda frágil economia imobiliária. Assim, face aos preços fabricados pelo
mercado e pela ainda frágil política habitacional do Estado, a crise da
habitação agrava-se e as famílias são obrigadas a procurar solução no mercado
paralelo, proliferam os clandestinos e os bairros de barracas.
Hoje, consideramos que não
faz sentido, continuar a valorizar um programa de habitação que assenta na
deslocalização e na guetização dos moradores em blocos em altura fora da malha
consolidada da cidade; e que faz todo o sentido o retorno dos antigos moradores
aos espaços vazios e em ruína na cidade. Com o seu regresso resolvemos o
despovoamento, o envelhecimento e o estado de ruína em que se encontra a
cidade. Com todos os custos de insegurança e de perda sistemática de valor
patrimonial que dia a dia se degrada e se perde. É urgente densificar a cidade
de forma a dar vida económica, cultural e social ao Porto.
4.1.
As tipologias
O programa para a Ilha da
Bela Vista contempla várias tipologias de habitação, que têm como matriz
referencial o habitáculo pré-existente, na sua morfologia, área bruta
disponível, organização e diversas apropriações do espaço interior em função
das funções que uma casa deve dar resposta: lazer, comer, descanso, convívio,
higiene, segurança e conforto, etc.
A definição das tipologias
das futuras casas foi consequência da participação das pessoas no processo de
arquitectura básica participada. O diálogo entre a equipa e os moradores foi e
ainda é uma constante. O desenho acontecia enquanto os moradores falavam das
suas aspirações e da necessidade de verem os seus problemas resolvidos. Estamos
a falar das patologias que as casas das ilhas do Porto arrastam ao longo da sua
longa existência: falta de luz no interior, ausência de ventilação, ausência de
banhos, de cozinha, as humidades persistentes, as infiltrações de águas, uma
série de grandes problemas que condicionam a existência de um habitar digno e
contemporâneo.
O programa e o projecto
foram sendo estruturados em função das memórias do habitar a ilha no Porto.
Desde o espaço construído em função da rua, do muro, da casa burguesa, das
traseiras da cidade, dos intervalos e interstícios, da passagem do interior
para o exterior confinado à rua-cidade. A importância do interior dos
quarteirões na definição tipo-morfológica do programa Ilha. Dando origem à ilha
tipo corredor, tipo varanda ou tipo pátio.
A compaticidade, a
densidade, a maximização do pequeno lote em função de um cliente de parcos
recursos. Resulta num espaço construído que sendo um problema se pode transformar
na solução para a renovação na diversidade social da cidade.
O programa da Bela Vista
renovada assenta na valorização dos átrios, dos percursos, das evocações, dos
volumes, na alteridade espacial, na presença do simbólico, na identidade do
muro, do corredor, das pequenas hortas e quintais.
Todo o processo assenta num
método simples e complexo de fazer arquitectura participada, envolvendo de
forma transversal moradores, políticos, arquitectos, antropólogos, técnicos de
Serviço Social, engenheiros, fotógrafos e documentalistas, etc. O processo
começou com a análise, descrição e interpretação do habitar na Ilha. Registando
as morfologias e as tipologias, interpretando as diversas formas de apropriação
do espaço interior (da vida privada) ao espaço exterior (da vida colectiva).
A ilha inspira-nos gestos,
atitudes, modos de organizar, de ocupar, de viver, de ser e de caminhar na
regularidade e simplicidade dos seus volumes, no funcionalismo poético das suas
formas de elevada contaminação. Aqui, forma, função e ocupação social
misturam-se numa complexidade construtiva que desafia a racionalidade dos planos
e conceitos da arquitectura moderna. O purismo da linguagem moderna cede
perante uma explosão hibrida e multifacetada de soluções construtivas que nos
apontam percursos conceptuais. É deste cenário complexo, ecléctico, disfuncional
e semiótico que desenhamos um programa e partimos para um projecto de
arquitectura básica participada. Onde a luz, o silêncio, a coerência das formas
projectadas nos conduzem para uma unidade diversa, complexa e simples das
tipologias de espaço interior e de espaço exterior construídos numa harmonia
heterotópica e multifacetada. Uma renúncia ao uniforme, ao rígido, ao
racionalismo dogmático imposto por um qualquer programa que não contextualiza
nem diversifica os modus operandi do ser em arquitectura.
Estamos perante uma
arquitectura de mínimos, de baixo custo, sustentável e confortável. Cada espaço
casa (casa alcova, casa colmeia, casa camarata, casa mezzanie), cada
espaço-corredor, cada espaço-praça, cada espaço-horta, cada espaço-escadas,
cada espaço-rampa, cada espaço laboratório, cada espaço associação de
moradores, cada espaço lavandaria comunitária, cada espaço centro de convívio,
é um compromisso entre a memória, o contexto, a identidade da ilha em função de
um compromisso plasmado num grande rigor compositivo consequência de uma
investigação-acção participada e partilhada.
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