A abordagem ao tema das
identidades e representações do ambiente numa «Ilha», parte sempre do
pressuposto de que existe alguém que classifica, que identifica, que dá nome a
um espaço de vida que interage entre um interior (o “nós”) e um exterior (o
“outro”). Para além de um conjunto variado de atributos que nos levam
posteriormente a falar das identidades e das representações de um ambiente
específico e singular de um espaço concreto. Neste caso a fabricação de uma
identidade do ambiente «Ilha» parte de dois movimentos de classificação, um
exterior à própria comunidade que habita a «ilha»; e um outro, que parte do seu
mundo social e estabelece uma ponte entre a classificação que é produzida fora
e aquela que se constrói no interior da ilha, que muitas vezes funciona como
uma resposta de sublimação ao problema da habitação. Uma contraposição à
identidade fabricada pelo exterior, e, que pode ser negativa ou deteriorada
segundo Goffman (1988).
Por exemplo Fischer (1994:16
ss.) considera que o espaço é o espelho de um mundo fabricado, modelado pelo
homem. O espaço é assim «objeto de uma nova
interpretação: a realidade dos nossos comportamentos, e também a vida social,
produzem-se e desenvolvem-se em lugares diversos que são mais que puros
envelopes exteriores». Evidentemente, que, na classificação e na
identificação do tipo «Ilha», os elementos arquitetónicos e urbanos, são sem
dúvida, uma das suas matrizes que melhor nos explicam a experiencia individual
e coletiva do ambiente numa «Ilha».
O simples ocupar do espaço já é sem dúvida uma
primeira manifestação de existência social. Por exemplo, as manifestações de
apropriação do espaço ilha vão desde a colocação de vasos por tudo o que é
sitio, desde o corredor, as pequenas escadas, em cima dos muros que dividem o
bairro do outro bairro, contiguo à ilha, da colocação de pequenos azulejos à entrada
da casa, pequenos alpendres, estendais de roupa que vão de um limite da casa
até ao outro extremo, respeitando as fronteiras e os limites do vizinho,
marcação rigorosa da parede da ilha que lhe está confinada, de um azul bem
portista, gaiolas com pássaros, cadeiras encostadas à parede, sapatos e
sandálias, degraus de entrada diferenciados, portas metalizadas, de madeira,
umas brancas de um lacado novo, outras de um zarcão gasto lembrando o peso da
memória. Aqui, a representação social está ainda e indissociavelmente ligada ao
sujeito que a produz. Assim, perante uma comunidade que procura na ocupação do
espaço e na sua individualização uma identidade e uma singularidade impositiva
fundamental à sua co-habitação num espaço fechado e socialmente comprimido.
Um universo de linguagens, de
representações, de gestos, de palavras, de objetos, de símbolos que dão a
conhecer uma micro-comunidade, contribuindo também para a sua afirmação
identitária no contexto mais amplo da cidade. A partir do qual a «ilha» constrói
a sua identidade em oposição ao outro que vive fora do seu contentor social, em
forma de corredor estreito e densificado por casitas rasteiras produto de um
programa simples e informal. O paradoxo é medonho, a fronteira é real e a outra
cidade, mais rica e opulente, do lado de fora determina e classifica a «ilha»
que vive do silêncio e do vazio da cidade.
Espaços e tempos de uma
narrativa identitária que nos levam à construção de um lugar de viver e de
habitar, espaço nosso em oposição ao
espaço dos outros. No fundo, aquilo
que as pessoas são liga-se intimamente ao espaço apropriado. Este espaço é o
espaço onde se nasce e se cria, aquele espaço que se liga à história do
crescimento do corpo e da personalidade. Esta construção social da identidade
em função de uma apropriação especifica, é bem visível neste relato que nos faz
uma criança de oito anos de idade, que dá pelo nome de Cecília Raquel, que vive
com a sua família, avós e tios na Ilha
das Larangeiras:
“Chama-se Ilha das Larangeiras,
porque antigamente era um campo com muitas larangeiras.
Tenho a minha avó, o meu avô,
o meu tio, a minha tia e a minha prima que vivem noutra casa.
Brincar às escolas é o que
mais gosto de fazer lá.
Brinco no pátio da minha avó.
A minha casa fica húmida quando
chove. É pequena mas está arrumadinha e limpa. Eu tenho gosto por ela.
Moro lá com o meu pai, a minha
mãe e o meu irmão.
Gosto de morar lá porque
conheço muita gente e tenho lá muitas amigas.
Quando brincamos na Ilha nós
nunca saímos para a Estrada sem ordem dos pais”.
«A Ilha onde eu moro é muito
bonita.
Eu brinco sempre lá dentro com
as minhas amigas que moram lá.
Só os meninos de lá é que lá
brincam.
Nós brincamos no pátio às
escondidas, caçadinhas, às escolinhas e às casinhas.
A casa de banho só tem sanitas
e chuveiro que o meu cunhado fez.
É para mim e para a minha
vizinha.
Ás vezes o esgoto que há lá
está entupido e deita fora e cheira mal.
A minha casa tem uma janela
que é do quarto da minha mãe.
A sala não tem janela.
O tanque da roupa está cá fora».
Ao longo destes relatos
podemos constatar a afirmação dos aspetos positivos do viver na «ilha»,
elementos de forte carga interativa entre atores que comungam do mesmo espaço,
da mesma espacialidade, do mesmo imaginário, do mesmo amor ao sítio de refúgio e
de jogo social. Estamos perante a consciência do espaço que existe para nós, na feliz expressão de «eu
brinco lá dentro com as minhas amigas que moram lá», um sentimento
profundo de apropriação e de partilha entre eles que são de lá. Estamos perante
o espaço que empírica e pormenorizadamente se conhece, o espaço que se percorre
a pé, e se vê e sente como nosso.
Dentro deste espaço as
crianças encontram a segurança e a proteção que a rua lhes tira e não dá, é
como se vivessem num paraíso perdido nesta Galáxia hiperativa em que se
transformou a cidade. Esta relação de apropriação do espaço de dentro, afirma a
sua diferenciação e a sua identidade em oposição com o espaço de fora, isto é,
o espaço dos outros, que é diferente do da «ilha», e do qual se desconfia por
ser considerado um espaço inseguro e de perigos. A ilha é assim um espaço mais
ou menos idílico, sem violências entre vizinhos, com uma relação de vizinhança
com fortes vínculos afetivos, assente no nascimento e no casamento, isto é, os
atuais residentes das ilhas do Porto são filhos e netos dos primeiros moradores
que vieram para o Porto em finais do Século XIX ou inícios do Século XX, e
desse modo olham para a «ilha» como o seu lugar, a sua terra, o seu ninho.
O Senhor José Fontelas,
nascido e residente na Ilha da Bela Vista, localizada na Rua D. João IV,
freguesia de Bonfim.
Afirma categoricamente: «daqui
só para o Prado do Repouso! Esta é a minha Ilha!» Refere ainda «A
convivência aqui é maravilha». Uma das expressões que mais gosta de
usar quando fala da sua ilha, do seu bairro.
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