quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A Cidade de Amarante. Uma espécie de liturgia à saudade e à memória

Escrever sobre a cidade dos meus antepassados é um desafio estimulante, mas também uma responsabilidade. Desde muito pequeno que convivi com a cidade, com o seu património, com as suas gentes, com as suas estórias e seus actos fundacionais. As suas memórias corriam entre momentos de entretenimento e de fantasia onde minha avó Deolinda de Almeida Matos (1919-2005), uma espécie de matriarca familiar contava e recontava de uma forma apaixonada as estórias fantásticas e maravilhosas da sua cidade natal. Uma espécie de liturgia à memória e à saudade. Ficou-me como lição a importância da memória como uma espécie de gramática cultural que nos permite entender e imaginar o mundo. Devolvendo aos homens esse sentido cósmico e telúrico que o escritor Teixeira de Pascoaes, materializou em palavras e sentimentos no seu Livro Memórias (2001).
Todo um reino fantástico que me envolvia e me dava a conhecer uma terra onde não nasci, mas à qual me ligava uma espécie de fio original. Era uma civilização inteira feita por homens cultos, santos, estadistas, escritores, artistas plásticos, empresários, operários, entre um povo simples de homens e munlheres que faziam do seu viver quotidiano uma epopeia progressista e modernizante.
Uma cidade que fazia da sua paisagem, da sua arquitectura, do seu espaço público, do seu heroísmo uma lição progressista e moderna, sem recusar  o seu passado como um estimulante necessário para a invocação e transformação sociocultural. Onde aristocracia rimava com filantropia, amor às artes e às ciências, e onde as suas elites dialogavam de forma contemporânea com os saberes e as artes de uma europa moderna e cosmopolita.
A cidade de Amarante configura-se e estrutura-se, também em função de uma rio, de uma paisagem, de uma estrada real, que antes de ser real já era eixo viário por onde circularam  povos e civilizações muito antigas. Integrada neste contexto eco-topológico de forte singularidade, a cidade gatinha pelas colinas, agarrando-se ali, descansando acolá, desenhando neste palimpsesto de matriz medieval, palácios e ruas, becos e casebres, cercas e mosteiros, hortas e pomares, fontes e jardins, passeios públicos e varandas, igrejas e capelas, calvários e romarias. Espraiando-se ao longo deste dorso ecológico, saltando de margem e deslizando pelas suas cotas baixas a cidade vai desenhando ruas e fachadas, construindo pontes e praças, modos de vida  ritualizando o espaço quotidiano transforma-o em lugar de celebração e de invocação.
A cidade de Amarante é assim feita de memória, de mandato e de história, mas sem nunca abdicar daquele seu impulso modernizante que tanto o nosso país e a região necessitava e para o qual tanto contribuiu com força, raça e engenho.


Nota: Este texto foi publicado no Reporter do Marão, 2009

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